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    Francisco Daudt

    Poder

    07/01/2015 03h00

    O pai da Capitu ("Dom Casmurro", Machado de Assis) é um exemplo do gênio do escritor. Personagem mais que secundário na trama, Machado fez dele, em poucas linhas, um exemplo daquilo que o mais reles dos poderes pode fazer com nossas cabeças.

    Funcionário público trabalhando numa repartição, foi alçado à chefia por um tempo. Seu superior se licenciou. O quanto bastou para passar o resto da vida se esquecendo do principal objetivo de seu trabalho (de servir ao público, de viver em função do público, é o significado perdido do termo "funcionário público") e se deliciando com a memória de sua fugaz, imerecida e ridícula importância: não perdia ocasião de dizer, "Porque na minha interinidade...", e lá vinha um pavoneamento.

    "Um pobre ator que se agita e se pavoneia no palco em sua hora, e então, nunca mais é ouvido" ("Macbeth", Shakespeare).

    Outra instituição, bem maior que aquela repartição pública, ouviu de seu chefe um dos mais contundentes e precisos diagnósticos do principal problema que atinge seus participantes: o risco de o poder lhes subir à cabeça, e eles se esquecerem dos objetivos fundamentais da instituição, por só pensarem em seus interesses mesquinhos. A instituição? A Cúria Romana. Seu chefe? O papa Francisco (Google: "Discurso à cúria", imperdível).

    Ex-aluno do Santo Inácio, detectei o cortante sotaque jesuíta em seu discurso: objetividade desapaixonada; concisão; lógica; classificação. O pontífice ("construtor de pontes") apontou 15 doenças capazes de corroer e viciar a alma dos cardeais, seduzi-los para suas "importâncias" e fazer com que esqueçam seus principais objetivos.

    Não tenho a menor fé que o discurso de Bergoglio comova aqueles corações, mas que preciosidade foi para quem ainda tem capacidade de ouvir. Pontes foram construídas para que quem participa de uma instituição possa escapar de sua ilha de vaidade e olhar a função que lhes cabe.

    Ouvi de um conhecido a precisa tradução do maior risco das instituições. Perguntei-lhe como ia seu clube de automóveis, e ele: "Ah... Antes nós éramos amigos que gostavam de carros antigos. Depois que fundamos o clube, viramos um grupo de inimigos lutando para ser presidente".

    O que há com o poder, e o que há com as instituições para que produzam tal efeito? Para os evolucionistas (e para Freud), poder é igual a acesso maior a sexo, e sexo é o maior motivador de nossas ações. Todos conhecem a figura do macho alfa e de como ele luta para chegar lá. Kissinger explicitou que o poder é o maior afrodisíaco. Serve para mulheres poderosas, igualmente.

    Aqui é preciso lembrar que "sexo" não se resume à conjunção carnal. Sentir-se poderoso também faz gozar, a cada cabeça pisada, a cada subalterno espezinhado, a cada pluma exibida.

    "O poder corrompe; o poder absoluto corrompe absolutamente" (Lord Acton, séc. 19). Ser democrático é desconfiar do poder excessivo, é contê-lo.

    Quanto às instituições, elas são o respaldo nobre do poderoso: "Estou preservando a história do automóvel" é equivalente a "Faço parte da quadrilha que defende os pobres".

    www.franciscodaudt.com.br

    francisco daudt

    Escreveu até dezembro de 2017

    Psicanalista e médico, é autor de 'Onde Foi Que Eu Acertei?', entre outros livros.

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