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    Francisco Daudt

    Violência

    21/01/2015 03h00

    O ser humano é o único animal violento que existe... se tomarmos o sentido original do termo, que significa violar, romper regras ou leis estabelecidas.

    Visto assim, qualquer atrocidade cometida por um leão, um hipopótamo ou um tubarão nada tem de violento, já que eles não estão violando qualquer código, simplesmente porque seus códigos de comportamento vêm de suas programações genéticas, e não de leis ou regras impostas por qualquer instância externa.

    É verdade que alguns animais domésticos, notadamente os cães, são submetidos a códigos de comportamento externo, e é curioso ver algo semelhante a arrependimento ou vergonha neles, quando rompem esses códigos.

    Flap, outro dia, vomitou no tapete da sala. Ele tem seus códigos de funções excretórias bem aprendidos e os cumpre ritualmente, sem falhas. Não é que o cão nos olhou de orelhas murchas e cabeça baixa e foi se esconder debaixo do sofá?
    Algum circuito cerebral conectou o vômito com um "fazer fora do penico", e ele reagiu com o mal-estar de quem violou uma regra.

    Por favor, não tome ao pé da letra os sentimentos de vergonha e arrependimento aqui atribuídos ao Flap. Por maior que seja nossa tendência antropocêntrica de olhar bichos como humanos, sei que as coisas não se passam assim com eles. O máximo que posso afirmar é que ele se sentiu desconfortável, o que mostrou sua absorção dos códigos externos que lhe foram ensinados.

    Isto posto, observamos que a violência começa em nossa mente, antes mesmo que algum ato externo a possa evidenciar. Não é só para a Igreja Católica que existem pecados por pensamentos. Nesses tempos "politicamente corretos", podemos facilmente ter ideias vergonhosas, devaneios violentos de nossos próprios códigos embutidos no superego (programa cerebral que contém códigos de conduta, ideais de perfeição que devemos seguir e um tribunal para nos julgar se os desafiamos).

    É curioso pensar que o emprego da força e até o ato de matar alguém (em legítima defesa, por exemplo) podem não ser violentos. Desde que se estabeleceu como acordo social que não faríamos justiça com as próprias mãos e que resolveríamos nossa ira através da mediação do Estado, recorrendo a leis, ao Estado ficou atribuído o monopólio do uso da força.

    Mas o Estado não pode tudo, ele próprio se submete à obediência das leis e, assim, pode ser violento quando o uso da força se deu ao arrepio do acordo social: "A polícia fez uso abusivo da força, e os policiais indiciados foram presos".

    Isso acontece em situações de disparidade de poder típicas, como atirar em alguém desarmado, por exemplo. A disparidade de poder entre uma criança e um adulto é a situação mais delicada com que lidamos: precisamos exercer autoridade junto a nossos filhos, eles precisam disso. Em situações limite, a autoridade também precisa lembrar que é mais forte (quando, em geral, basta mostrar que é mais sábia).

    Se os pais desenvolverem medo de seus filhos, porque o senso comum os vê sempre como coitadinhos, não exercerão mais autoridade sobre eles, e com isso... estarão sendo sutilmente violentos.

    www.franciscodaudt.com.br

    francisco daudt

    Escreveu até dezembro de 2017

    Psicanalista e médico, é autor de 'Onde Foi Que Eu Acertei?', entre outros livros.

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