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    Francisco Daudt

    Naturalização

    29/04/2015 02h00

    Era uma cidadezinha vitoriana rica, parada no século 19 e isolada do resto do mundo. O detetive Nick Holmes (das histórias em quadrinhos da minha infância) tomava chá numa bela casa com a dona dela, quando entrou a copeira com um envelope. A senhora o pegou, agradeceu com a cabeça e pousou-o sobre a mesa, continuando a conversa. Depois de algum tempo, abriu o envelope, tirou o cartão chique e comentou: "Oh, que gentis. Estamos convidados para o lanche amanhã". Nick ficou intrigado: por que não telefonaram?

    –O que é "telefonar"?

    Nick explicou.

    –Mas isso toca dentro de casa? E combinam antes a que horas vão telefonar? Pode tocar enquanto estivermos jantando?

    A senhora fazia chover perguntas feitas a partir de sua perplexidade horrorizada com a modernidade.

    Revivi a delícia desse olhar de quem não acha essas coisas "naturais" com o personagem de Maggie Smith em "Downton Abbey", quando ela perguntou "o que é um weekend?" Ela também ficaria horrorizada por saber que a educação dos filhos se afastou do princípio vitoriano de que "children are to be seen, not to be heard" (as crianças são para serem vistas, não ouvidas).

    Quantas coisas se tornaram "naturais" ao longo do tempo. O avô de uma amiga foi preso em Copacabana, nos anos 1920, por estar de peito nu na praia. Sim, um topless masculino, numa época em que todos usavam camiseta, francamente imoral, quando se toma o sentido original do termo (contra os costumes).

    Quantas outras deixaram de ser. Cheiros, por exemplo. Mesmo sendo um fumante em abstinência há anos (ou talvez por isso mesmo), comecei a notar que o lado de fora dos estabelecimentos públicos, como restaurantes, hoje em dia cheiram a cigarro, e cheiram mal, de tal forma ele se desnaturalizou para mim. Fico pasmo, pois já gostei dele. Não acho que "agora vi a verdade", apenas deixou de ser "natural".

    Na contramão da própria natureza, vi médicos legistas fazendo lanches entre as autópsias, já tendo o cheiro de cadáveres (ou de qualquer carne em decomposição), que faz parte de nossas repulsas genéticas, se tornado natural para eles.

    Quando meu filho me perguntou qual a diferença entre moral e ética, sugeri-lhe tomar como metáforas a tática e a estratégia: esta é o grande plano; aquela, sua aplicação mais direta. O sentido básico de ética é não causar dano injustificado (o dano da legítima defesa é ético). Uma ética ativa suporia fazer o bem.

    Apesar de tanto a moral como a ética dizerem respeito aos costumes, a ética é mais ampla, mais filosófica, e a moral mais coisa do dia a dia. O topless do avô só causava dano por se chocar com os costumes de seu tempo. As questões éticas tendem ao atemporal. Mesmo depois de muito tempo imersos no cheiro da podridão, aqueles legistas têm registro da repugnância que ela causa. Comem perto porque é mais cômodo, não porque acham bom. Se lhes for dada a escolha, preferem um cheiro de picanha na brasa.

    Pensei sobre isso diante de dois fatos recentes: as manifestações de rua e a rejeição dos telespectadores que fez a novela mudar de rumos.

    Ambos resultado do repúdio ao cheiro de podre.

    francisco daudt

    Escreveu até dezembro de 2017

    Psicanalista e médico, é autor de 'Onde Foi Que Eu Acertei?', entre outros livros.

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