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    Francisco Daudt

    Justiça

    16/09/2015 02h00

    Existe uma questão muito evitada, infelizmente, pelos psicanalistas: que instrumento a psicanálise usa para a busca da cura? Pois respondo: é a justiça.

    Explico: um paciente me chega como um prisioneiro de sua infância, a neurose pode ser definida assim. Ele me contrata como a um advogado de defesa e, como tal, suspeito de que essa prisão tenha sido injusta, armada por inabilidade (raramente por má intenção) de quem o criou –é o complexo de Édipo. Quero ver os autos do processo: ele teve um julgamento justo? Teve direito a ampla defesa? Há atenuantes? As leis rompidas ainda vigem ou já prescreveram? Como menor, seria ele imputável pelos crimes de que o superego o acusa? À medida que vamos esclarecendo sua história, justiça vai sendo feita, e ele progride para o semiaberto, para a domiciliar, a condicional, até que se veja no processo interminável de construir sua liberdade.

    "Ora, mas como o processo analítico pode competir em pouco tempo com décadas de treino na neurose?" Respondo: é a justiça. Ela tem uma tal força de recuperar a integridade que o círculo virtuoso, uma vez iniciado, põe o paciente sobre seus pés, de cabeça erguida, cheio de energia para lutar por seus direitos.

    A justiça, que Aristóteles considerou como a maior das virtudes, está profundamente entranhada em nossa herança genética, eis por que somos tão sensíveis a ela, eis por que vê-la atendida nos comove e nos faz sentir melhores, acima do horror do prosaico, do rasteiro, do mesquinho, do vulgar, do interesseiro, do predador, do corrupto. Ela é o eixo central da nobreza de espírito, da fidalguia, da beleza e da ética. É ela que nos faz dormir o melhor dos sonos: o sono dos justos.

    A justiça se pratica (ou se deixa de praticar) a cada momento: o que escrevo é justo? Estarei incorrendo no erro da injustiça? Usando o "mot juste" (palavra certa, justa, que bem se ajusta, em francês)?

    Nossa reação natural ao injusto é a raiva: sem indignação, sem raiva, não se faz justiça, o indivíduo não clama pelo direito, o povo não vai para as ruas demonstrar sua repugnância. A raiva é a mãe da justiça. Desconfie de quem diz que a raiva é feia, que é um mal em si: esse está querendo calar sua boca, querendo que você se submeta à injustiça. Suas intenções são suspeitas.

    O linchamento é um horror? Sim, mas ele também é expressão de busca da justiça e acontece principalmente quando há falência do Estado em promovê-la. A civilização começou com uma lei que é quase um linchamento: "olho por olho; dente por dente". O direito democrático vem se esforçando por aprimorar as leis, fazê-las mais justas, num processo que nunca terá fim, pois a democracia é o pior dos regimes, com a exceção de todos os demais.

    No filme "Filadélfia" (J. Demme, 1993), perguntam ao advogado representado por Tom Hanks por que fez carreira no direito. Ele responde: "Because now and then –in the realm of laws– justice is served!" ("Porque de vez em quando –na prática das leis– a justiça é feita").

    É essa, nos dias de hoje, a principal esperança de um brasileiro se orgulhar de seu país.

    www.franciscodaudt.com.br

    francisco daudt

    Escreveu até dezembro de 2017

    Psicanalista e médico, é autor de 'Onde Foi Que Eu Acertei?', entre outros livros.

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