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    Francisco Daudt

    Começo de conversa

    14/10/2015 02h00

    "Você mataria sua mãe a facadas? Não? Nem eu! Então já temos alguma coisa em comum, é um começo de conversa." Essa era a anedota que meu tio Marcello contava para dizer que, quando a divergência com alguém era grande, fazia-se necessário buscar fundações comuns para a construção do edifício do entendimento.

    Ele era engenheiro. Na construção de casas, há coisas que as põem de pé e outras que as derrubam, não há isso de verdades relativas. Ele era razoável, esse termo ardiloso que parece significar "mais ou menos", mas que também quer dizer "pessoa que tem apreço pela razão e com quem se pode raciocinar". Às vezes apelo para o inglês "reasonable" –o Pasquale Cipro que me perdoe– para me fazer claro.

    Arno Viero, doutor em filosofia da lógica (a coisa mais complicada que já vi), me dizia: "Se você não partilha axiomas, não converse". Axiomas são verdades autoevidentes, que não precisam de demonstração. "Se você esgrima floretes, não vá duelar com um moleque, pois ele vai te tacar uma pedra na cara."

    Mas qual é a aplicação prática do conselho do Arno? É evitar um atrito que produza mais calor do que luz. Claro, isso se você estiver interessado na luz; há gente que se interessa mais pelo embate em si, por derrotar o outro na discussão, por se mostrar por cima, por humilhar sadicamente, por fazer o outro se sentir um merda. Aqui me dirijo a quem busca a luz do entendimento e da razão, quem busca aprender e ensinar, questionar suas ideias para melhorá-las.

    No conselho dele havia uma diretriz para viver melhor: detecte a área de competência de seu interlocutor –e a sua própria–, e se restrinja a ela. Não vá você conversar de futebol comigo, nem eu de psicanálise com o sapateiro. Lembre-se do conselho romano: "Não queira o sapateiro ir além das sandálias".

    Mas, e se o sapateiro souber de psicanálise? Mesmo improvável –e os preconceitos só são danosos quando se recusam a mudar diante de evidências–, conversaremos, mas aí entra a busca das crenças mínimas em comum, os axiomas, o começo de conversa.

    "Se eu soltar esse lápis, ele vai para o chão ou para o teto?" De acordo com a resposta, eu fico ou vou-me embora sem conversar; "Urubu é um pássaro verde que fala!" Ah, quando alguém chama urubu de meu louro, não converso e vou-me embora; "Eu sou pós-moderno e verdades são todas relativas!" Não converso e vou-me embora.

    E as pessoas de fé? Elas se regem pelo "Credo cuia absurdum" (Creio PORQUE é absurdo), não há nada de racional no que creem. Bem, então vejamos: "Há um homem que ressuscitou depois de três dias morto". Não converso, mas respeito. "O corpo de Cristo está presente na hóstia." Não converso, mesmo respeitando sua crença.

    No entanto, crenças religiosas podem ser fonte de grave intolerância, mormente quando o religioso não tem muita segurança em sua fé e precisa combater externamente sua dúvida, como um homofóbico precisa eliminar sua perturbação sexual interna matando um gay. Se um desses grita "Morte aos cães infiéis!", sinceramente: não converso, não respeito e vou lutar contra.

    O mesmo se aplica aos fanáticos da religião lulopetista.

    francisco daudt

    Escreveu até dezembro de 2017

    Psicanalista e médico, é autor de 'Onde Foi Que Eu Acertei?', entre outros livros.

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