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    Francisco Daudt

    Escárnio e honra

    09/12/2015 02h00

    Do dicionário Houaiss:

    Escárnio: atitude ou manifestação ostensiva de desdém, de menosprezo. Ex.: ele olhou com escárnio para os eleitores que o vaiavam.

    Honra: princípio ético que leva alguém a ter uma conduta virtuosa, corajosa, e que lhe permite gozar de bom conceito junto à sociedade. Ex.: a honra às vezes está acima das leis.

    Temos dois diferentes processos de construção de nossa identidade, daquilo que somos, e nem sempre eles são conscientes: identificação por imposição e identificação por gosto.

    A primeira pode se dar de maneira direta, como no caso do príncipe herdeiro de uma casa real, que se submete desde o berço a um destino; ou então, "minha família é de banqueiros há quatro gerações, por isso fui ser banqueiro".

    Também pode ser de maneira indireta: a maioria dos abusadores/espancadores de crianças foi abusada/espancada por seus pais, quando pequenos.

    Outro jeito é por reação ao que os pais foram, e que os filhos abominaram (filhos de pais caretas viram hippies; filhos de hippies viram caretas). Há um tipo dessa identificação que é particularmente cruel: a do vingador.

    Você já deve ter visto um filme de faroeste em que a criança assiste a sua família ser massacrada por bandoleiros, e jura vingança: "Dedicarei minha vida a perseguir, achar e acabar com esses bandidos". Resulta que o menino se torna alguém cujo destino foi imposto indiretamente pelos assassinos de sua família.

    As identificações por gosto são mais fáceis de compreender, e são sempre conscientes: você descobre alguém, ou alguma coisa, que você admira muito, e almeja ser ou fazer igual. É o processo de identificação mais bonito que há. Vivi isso na pele: aos 14 anos, descobri meu modelo de pai num livro ("To Kill a Mockingbird"/"O Sol É para Todos", Harper Lee, 1960) e desde então Atticus Finch foi meu farol-guia para a paternidade. Ele era justo e honrado.

    As identificações por imposição nunca funcionam muito bem. Elas se parecem com um transplante meio rejeitado, aquele tecido se inflama, dá problema de saúde, não cai bem em quem o recebe. A pessoa vai pela vida carregando um fardo.

    As identificações por gosto funcionam de maneira completamente diferente: o tecido transplantado é completamente absorvido pelo organismo, se torna parte de nossa estrutura, nos faz mais fortes. Com elas, somos um tecido inconsútil, nunca uma colcha de retalhos.

    Grande parte do trabalho da psicanálise é tornar conscientes os modelos de identificação que prejudicam nossas vidas, e rejeitá-los a partir daí. Isso é parte fundamental da cura.

    Nosso Brasil está doente, de doença moral. Quando olhamos para cima, a podridão abunda. E ela desce em cascata como a lama de Mariana, contaminando o Estado com um governo que escarnece de seus governados. Há um tecido degenerado se impondo a nós, em franco processo de rejeição: é preciso eliminá-lo antes que cause falência de múltiplos órgãos públicos.

    A ministra Cármen Lúcia agiu como médica e fez diagnóstico preciso dessa doença: cinismo e escárnio.

    Quando vemos tal postura, olhamos para cima com gosto e nos identificamos. O nome disso é honra.

    francisco daudt

    Escreveu até dezembro de 2017

    Psicanalista e médico, é autor de 'Onde Foi Que Eu Acertei?', entre outros livros.

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