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    Francisco Daudt

    Nossa espécie está condenada a uma dança de trapaças e desencontros

    25/05/2016 02h00

    "Ela apontou a pistola para ele, e disse: 'Você vai tirar a roupa e me comer agora!' Sem alternativas, ele obedeceu: deitou-se de costas enquanto ela o cavalgava, encaixando-se em sua ereção".

    Não é preciso entender de natureza humana para saber que a peça de ficção acima é totalmente inverossímil. Enquanto, para os homens, o estupro é uma estratégia reprodutiva de negociação mínima, o contrário não se aplica: um homem intimidado não ficará ereto.

    E os temores nem precisam vir da ponta de uma arma. Conta-se que Antônio Maria foi confundido com o escritor Carlos Heitor Cony por uma estonteante loura, que se declarou sua fã. Ele confirmou. Afinal num motel, a moça chamou-o para a cama. Neste ponto, Cony, que ouvia a história, perguntou-lhe ansioso:

    "E aí, Maria, e aí?"

    "Aí, Cony, VOCÊ brochou!"

    David Buss, psicólogo evolucionista, escreveu um livro chamado "Por que as mulheres fazem sexo". Tem duzentas páginas. Elas podem se dar ao luxo de terem tantas e diferentes razões, pois não precisam de muito aparato biológico para o congresso carnal. Se o livro tratasse de homens, só teria uma linha: "Porque tiveram desejo e conseguiram uma ereção". Ah, e teriam que escapar da ejaculação precoce, outra manifestação do desconforto psíquico frente ao sexo.

    Ou seja, quer função? Não intimide, não coaja, não cobre, não culpe: nós homens somos muito frágeis nesse setor, precisamos nos sentir "por cima da situação" para funcionar. Já que são as mulheres que escolhem quem terá acesso a elas –e toda misoginia vem do inconformismo com esse poder–, há dois softwares básicos de fazer a corte que rodam na cabeça masculina: o "papai" e o "cafajeste".

    Se pudéssemos traduzi-los, o "papai" diria: "Aceite-me, pois eu sou um bom rapaz, atencioso, respeitador, acho você o máximo, vou te ligar amanhã, quero me casar com você, cuidar de nossos filhos, nunca te abandonarei".

    E o "cafajeste": "Humm, você é gostosa e eu vou te levar à loucura, vou soltar essa puta que existe em você e que ninguém mais vê além de mim, vamos acabar com essa babaquice de ser santa, você não nasceu pra isso, você nasceu para ser feliz no sexo, a hora é esta, sem amanhã".

    Curioso é que o equivalente do programa "santa", das mulheres de autoestima elevada, não seja o "papai": ele roda nos homens que não se acham os maiorais. Nestes últimos roda o "cafajeste".

    Como a mãe natureza privilegia a quantidade de filhos, mas também cuida da qualidade de criação, ambos os programas têm seu apelo: uma mulher pode amar seu marido fiel e ficar transtornada com o cafajeste que lhe mostre desejo.

    Finalmente, um homem tendendo a papai pode bem tentar simular um cafajeste para melhorar suas chances.

    E vice-versa: na ópera "Don Giovanni", de Mozart, o proverbial cafajeste que deu origem ao termo Don Juan canta Zerlina, noiva de um camponês, prometendo-lhe casamento nobre na ária "La ti darem la mano" ("Você não foi feita para ser camponesa").

    Não adianta: para continuar a existir, nossa espécie está condenada a uma dança cheia de trapaças e desencontros, ainda que cheia de desejo de encontro e de sinceridade.

    francisco daudt

    Escreveu até dezembro de 2017

    Psicanalista e médico, é autor de 'Onde Foi Que Eu Acertei?', entre outros livros.

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