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    Francisco Daudt

    Por que, afinal, pessoas que se odeiam continuam casadas?

    03/08/2016 02h00

    David Perez Facorro/Reproduçã
    ORG XMIT: 211501_0.tif Fotografia: Foto de casal de idosos andando de mãos dadas, que representa o Amor no "The Photographic Dictionary" (Dicionário Fotográfico), um projeto que se propõe a definir palavras por meio de fotografias literais, figurativas ou puramente pessoais. (Foto: David Perez Facorro/Reprodução)
    Casal de idosos do "The Photographic Dictionary" (Dicionário Fotográfico)

    A paixão tem prazo de validade (cerca de três/quatro anos) e três destinos possíveis: a indiferença mútua, quando então há uma separação sem rancor; o amor companheiro, seu melhor resultado, quando a amizade erótica entre pessoas que se conhecem e se admiram toma o lugar das ilusões; e o sadomasoquismo, quando o amor é substituído pelo rancor surdo, num processo de vingança interminável, de ambas as partes.

    O triste é perceber que o sadomasoquismo leva a mais bodas de ouro do que o amor: olhe em volta, nos restaurantes, os casais de meia idade em silêncio, desfilando seu desprezo recíproco para a plateia.

    Sempre me intrigou o porquê desse fenômeno. Afinal, se eles se odeiam, por que não se separam? Quarenta anos de clínica me levaram a entender: porque não podem; eles se encontram numa prisão, e um é carcereiro do outro.

    Numa prisão você perde a liberdade: por definição é um lugar de onde você não pode sair quando quiser. Perder a liberdade não é ruim em si, vive-se perdendo a liberdade por vontade, em troca de um projeto bacana, como ter filhos, por exemplo. Há mesmo aqueles que têm horror à liberdade, arranjam alguém (um ditador; um deus; um líder populista) para obedecer e acham que estão com a vida resolvida, pois fazer escolhas os assusta.

    Ora, até aí, nada; é escolha deles, que sejam felizes, é como na anedota: "O que você acha dos padres se casarem?" "Bem, se eles se amam, por que não?"

    Mas a prisão não é uma escolha, ela traz revolta e ressentimento, ela produz ódio. O problema é que esse ódio não se dirige ao "sistema" e os guardas estão bem defendidos. Sobra o companheiro de cárcere. Se Jesus disse "ama o próximo", porque é complicado amar o distante, também se acaba por odiar o próximo... porque ele está ao nosso alcance.

    Essa é a tristeza do casamento-prisão: odeia-se o cônjuge-carcereiro. Lá se está a contragosto -e mostrando isso-, forçado, aturando, porque se entrou por paixão efêmera, por linha de montagem social, para não parecer esquisitão, solteirona, gay, porque todo mundo se casa, estava na hora de entrar para o rol dos homens sérios, para sair da prisão que era a casa dos pais, ter uma festa de arromba, descansar do medo de mulher desconhecida, arranjar alguém que o sustente, para sair bem na foto.

    É por isso que, no consultório, muitas vezes faço essa pergunta: o que te prende a esse casamento? Muitas vezes uma pergunta parece uma ordem disfarçada ("Sai logo dessa droga!"). Não é o caso: quero conhecer mesmo os grilhões daquela prisão.

    Isso faz da separação uma possibilidade séria: "É, de fato, eu não morreria se me separasse, mas... não quero! Há muitas coisas boas no meu casamento, além dos filhos. Bem, se eu posso me separar e não quero, por que eu fico me queixando do outro? Por que eu sou um ressentido crônico contra alguém que considero meu carcereiro?"

    Nessa hora, a pessoa retorna de algum modo ao início de seu relacionamento, quando estava nele porque queria, e não aprisionado. Nessa hora a pessoa pode escolher se casar. Só pode se casar quem pode se separar. É quando o casamento não é mais uma prisão.

    francisco daudt

    Escreveu até dezembro de 2017

    Psicanalista e médico, é autor de 'Onde Foi Que Eu Acertei?', entre outros livros.

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