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    Francisco Daudt

    Aprendiz do desejo

    12/10/2016 02h00

    Divulgação
    O personagem Linus discursa em campanha estudantil
    O personagem Linus, da turma de Charlie Brown e Snoopy

    Linus, o amigo de Charlie Brown e Snoopy nos quadrinhos de Charles Schultz, olhava encantado para a coleguinha no recreio. Foi se aproximando dela, como hipnotizado. Quando chegou bem pertinho, romanticamente... deu-lhe um soco no nariz.

    Ele não sabia o que fazer com seu desejo despertado. Sabia a linguagem do soco como expressão de uma intensidade emocional, era isso de que dispunha, e foi isso que usou.

    A comicidade vem de que não somos tão diferentes dele. O que sabemos de nosso desejo? Como sabemos expressá-lo? De que dispomos para isso? Infelizmente, a resposta é que sabemos pouco, e o que dispomos é dos meios oferecidos pelo senso comum.

    Vou me explicar usando uma dessas maravilhas politicamente incorretas que ouço no consultório: "Cheguei à conclusão de que esse negócio de f** é pra operário. Há tantas coisas boas para se fazer na cama, e neguinho só pensa naquilo?"

    Sim, habitualmente nosso desejo é monopolizado pelas linhas de montagem impostas pelo senso comum. "Você se formou? Já tem trabalho? Está na hora de entrar para o rol dos homens sérios!" E lá vai o infeliz se casar com 25 anos... "A moça tá dando mole! Vai lá, otário, vai lá!" E lá vai o cara, sem ao menos se consultar se a moça é ou não objeto de seu desejo. Depois vem apavorado me dizer que "falhou". Pois eu lhe digo, ouça o que "ele", lá em baixo, tem a te dizer, pois pelo visto ele entende mais do seu desejo que você. Você achou que devia gostar; ele não.

    Isso abre dois temas: impotência e autoconsulta. Muitas impotências vêm da falta de autoconsulta, e da obrigação de performance: o rapaz está desconfortável ali, fazendo o que o senso comum lhe diz para fazer, e não o que ele quer. E não adianta: ninguém manda no de baixo. Bem que tentam, com Viagras e assemelhados, mas ele lá continua rebelde. O rapaz sabe o que quer? "Eu queria, a princípio, fazer carinho e beijar, e ir vendo o que rolava depois, mas eu estava preocupado com o que a moça ia pensar de mim". Bom, esse até sabia o que queria, só faltava combinar com a moça.

    A propósito, agora as moças importaram a preocupação com desempenho, outrora exclusiva deles, e começam a não ter orgasmo por excesso de medo de crítica da plateia. Sim, elas vão para cama com plateia: todas as mulheres com que o rapaz já esteve lá estão, presentes na cabeça dela. E ela se comparando: "Tenho que arrasar!" Ah, meu deus, que triste... ela não está lá para brincar, mas para arrasar, e isso inclui não ter celulite! Como se entregar ao orgasmo, com tanta gente observando?

    É claro que o tema sexual é uma metáfora e as impotências são mais amplas. Não aprendemos a nos consultar para as coisas mais simples, de escolhas profissionais a compra de roupa. E, assim, não conhecemos nosso desejo. Há na psicanálise um aspecto pouco compreendido: ela é como a análise clínica. Não adianta só saber que sua glicose está alta, é preciso, a partir disso, tomar providências, dietas, exercícios. Se você aprendeu algo sobre seu desejo, o que vai fazer para implementá-lo? Consultar-se, ouvir-se, e treinar seu desejo. O treino é bom em si, não precisa "chegar lá".

    francisco daudt

    Escreveu até dezembro de 2017

    Psicanalista e médico, é autor de 'Onde Foi Que Eu Acertei?', entre outros livros.

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