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    Francisco Daudt

    Crenças injustas

    29/03/2017 02h00

    Alexei Nikolsky/France Presse
    ORG XMIT: MOW020 With the Reichstag building in the background Russia's President Vladimir Putin speaks with German Chancellor Angela Merkel on the roof of the Chancellery in Berlin, on June 1, 2012. The main topic of Putin's meeting with Angela Merkel was the unrest in Syria, as Western powers attempt to persuade the Kremlin to drop its support for the regime of Bashir al-Assad. AFP PHOTO/ RIA-NOVOSTI/ POOL / ALEXEI NIKOLSKY
    'Há meio melhor de se obter proeminência social do que o injusto winner-loser: a sabedoria'

    Meu filho só entrou em contato com os dez mandamentos aos nove anos, quando entrou num colégio católico. Diante do que mandava honrar pai e mãe, me perguntou candidamente: "Por que não tem um mandando honrar filho e filha?"

    O cliente tinha 12 anos, e se masturbava alegremente desde os nove, quando seu irmão mais velho veio lhe informar que aquilo era pecado mortal, e que ele podia ir para o inferno se não se confessasse. Claro que ele não parou, mas passou a sentir uma culpa enorme por fazer aquela coisa tão boa.

    Um leitor me escreveu dizendo que considerava a homossexualidade uma aberração, pois o normal era homem desejar mulher, pela sobrevivência da espécie. Respondi-lhe que a natureza não produz apenas coisas funcionais, que pelo seu raciocínio o apêndice não deveria existir –só existe para causar apendicite?– e que os 10% de canhotos que sempre houve também seriam aberrações. Escreveu-me de volta dizendo que entendia meu ponto, mas que para ele já estava muito tarde para mudar, pois tinha 75 anos.

    Essas histórias mostram como podemos absorver crenças injustas –e erradas– numa época em que ainda não temos como discuti-las, nem como rejeitá-las. Meu filho teve a sorte de conhecer uma delas quando já podia fazer a pergunta óbvia que expunha sua injustiça, mas a história do leitor gay me doeu no coração: uma vida inteira se considerando aberrante!

    Elas não se derivam só da religião formal, ao contrário, sua maioria vem da principal religião informal que existe: o senso comum. Ele vem derramando crenças injustas e erradas em nossos ouvidos desde que nascemos, e elas se entranham num software poderoso em nosso cérebro: o superego.

    Nós nos movemos por dois motores biológicos principais: o da própria sobrevivência, e o da sobrevivência da espécie. O superego cuida da primeira, dando medos inatos que salvam nossas vidas (confinamento; altura; escuro; abandono; ameaça física; répteis e grandes insetos voadores, p.ex.). Mas depois ele vai se emprenhando pelo ouvido de crenças erradas que parecem fundamentais para sobrevivência, não só de si, mas que envolvem o segundo motor, o sexo.

    Entre as piores está a que divide a humanidade em superiores e inferiores, vencedores e fracassados ("winners e losers", em inglês), fodões e merdas (em português claro). Oriunda da nossa necessidade de ostentar troféus que nos tornem atraentes para o sexo oposto, ela é o motor das guerras, das brigas de torcida, da busca desesperada de proeminência social (nada de errado com proeminência social em si), da ganância, do jogo sujo, da corrupção.

    Exemplo incrível: Vladimir Putin, sabedor que Angela Merkel tem medo de cães, chamou seu imenso labrador para se deitar aos pés dela, em sua visita ao Kremlin. Perguntada depois, Frau Merkel disse: "Só pessoas muito inseguras se utilizam de um expediente assim. O que não faz mais que deixar à mostra suas fragilidades".

    A chanceler ganhou o meu respeito, não apenas por seu diagnóstico preciso, como por mostrar que há meio melhor de se obter proeminência social do que o injusto winner-loser: a sabedoria.

    francisco daudt

    Escreveu até dezembro de 2017

    Psicanalista e médico, é autor de 'Onde Foi Que Eu Acertei?', entre outros livros.

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