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    Francisco Daudt

    Primeiro ato da identidade masculina é misógino e pode durar a vida inteira

    21/06/2017 02h00

    Fotolia

    "A liberdade consiste em conhecer os cordéis que nos manipulam", disse Espinoza, e não há cordel mais poderoso que o da natureza humana. Seria cômico se não fosse trágico que a própria natureza humana nos iluda para menosprezá-la: nós acreditamos que ela não nos afeta, que somos apenas frutos da cultura.

    A questão é que nossa identidade masculina deriva do instinto de preservação da espécie, da mesma maneira que as plumas do pavão servem ao dele: um chamariz para fazer sexo, uma propaganda de quão bom fornecedor de genes reprodutivos nós somos. Ela anuncia qualidades atraentes ao sexo oposto: "sou forte, poderoso, destemido, ativo, protetor, pegador, meio cafajeste, você estará segura a meu lado, será invejada e terá muitos filhos com os meus genes, o que significa que nossa prole gerará mais e mais descendentes".

    Exatamente a propaganda animalesca que as belas penas do pavão anunciam, e que falam diretamente ao inconsciente das fêmeas (apenas o consciente pode ser feminista), mexendo com elas, que costumam também ignorar os cordéis que as manipulam.

    Fascinante é acompanhar a interação natureza/cultura que forja a identidade masculina. É claro que começa em casa, mas a família ainda é muito civilizada quando comparada com os pequenos trogloditas, os coleguinhas que encontraremos na escolaridade. É lá que a patrulha começa: o menino é apresentado ao antimodelo da "mulherzinha". Ele aprende que ser macho é ser foda (brigão, bully, esportivo, bruto, atlético, de poucas palavras e muitos palavrões, malandro, hiperativo etc.), e que ser "mulherzinha" é ser merda (passivo, pacífico, estudioso, introspectivo, conversador, sensível, bullyed etc.).

    Pois é: o primeiro movimento da identidade masculina é misógino –não é homofóbico–, é um movimento de desprezo pelas meninas que tem muita chance de durar a vida inteira. E infelizmente, o primeiro jogo fodão-merda (F/M. Em inglês, "winner-loser", sendo "loser" o pior palavrão da língua) em que um menino se envolve é justamente o da identidade masculina
    (os outros serão sucessores deste).

    Daí em diante o menino será frequentemente provocado a provar sua macheza. O "chicken-chicken" americano ("prove que você tem coragem") sempre conseguia manipular o Marty McFly, em "De volta para o Futuro".

    É a partir desse quadro que o medo de ser mulherzinha (do qual o medo de parecer veado é sucessor) equivalerá à castração freudiana: a perda das penas do pavão, do cacife para conquistar fêmeas.

    Não é à toa que o jogo F/M se torna uma praga tão comum em todos os ambientes: o homem tem suas inseguranças, ele sabe que não é tão F quanto parece, e em seu pensamento imbecil binário (o tipo de pensamento mais comum da espécie), se ele não é F, então é M, e tem que esconder isso ao máximo. Um dos jeitos é ser bully e fazer outro se sentir M, ou veado, ou loser, ou inferior: isso dá um momento de alívio em que ele se sente F.

    A alternativa a essa praga é se sentir seguro de si, "na sua", coisa difícil de construir. Mas é a mais bem-sucedida das penas de pavão: não há nada tão atraente quanto uma autoestima elevada.

    www.franciscodaudt.com.br

    francisco daudt

    Escreveu até dezembro de 2017

    Psicanalista e médico, é autor de 'Onde Foi Que Eu Acertei?', entre outros livros.

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