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    Francisco Daudt

    O pior dos vícios

    11/10/2017 02h00

    Ahn Young-joon - 10.ago.2017/Associated Press
    FILE- In this Aug. 10, 2017, file photo, a man watches a television screen showing U.S. President Donald Trump, left, and North Korean leader Kim Jong Un during a news program at the Seoul Railway Station in Seoul, South Korea. America's annual joint military exercises with South Korea always frustrate North Korea. The war games set to begin Monday, Aug. 21, 2017 may hold more potential to provoke than ever, given Trump's "fire and fury" threats and Pyongyang's as-yet-unpursued plan to launch missiles close to Guam. (AP Photo/Ahn Young-joon, File) ORG XMIT: XSEL105

    "You're a loser" é o pior xingamento da língua inglesa, e sua tradução mais realista é "você é um merda" ("perdedor" e "fracassado" não fazem jus à força da expressão original). Isso se dá porque eles –sobretudo nos EUA– dividem o mundo em "winners" e "losers" (fodões e merdas, a partir de agora aqui referidos pela sigla f&m), as pessoas vivem na aflição de como serão classificadas.

    Isso pode ter começado entre os americanos, mas agora é fenômeno mundial, e sentimos essa guerra f&m a toda hora.

    Explico: o sentimento de se ver como um "m" equivale a se perceber como um pária sem perspectivas na vida. É tão insuportável, dá tanta raiva, que a pessoa fará qualquer negócio, até matar (ou se matar), para aliviá-lo.

    Mas a reação mais comum é buscar fazer alguém mais se sentir um "m" para ter um mini-triunfo como "f" ("Ora, 'm' é o outro, eu sou 'f'!"). Uma "defesa-f". Esse mecanismo de defesa contra a angústia, se usado constantemente, torna-se uma doença, uma variação do jogo sadomasoquista (s&m) sem as botas e o chicote e sem o fetiche sexual, só que esse é sutil e não tem graça nenhuma, a menos que se fale da graça do ridículo, do deboche e da humilhação, de se rir do outro, e não com o outro.

    Torna-se um vício, o pior dos vícios. Vício é uma ação compulsiva que causa prazer imediato, mas dano ao próprio e a outros, como é o caso. Mas por que o pior? Por se incorporar à cultura como uma crença, uma ideologia.

    Pelo senso comum achar que a vida é assim, ao ponto que pensamos em alguém e automaticamente já o classificamos no f&m.

    Listo abaixo alguns dos desdobramentos que fazem do vício f&m um crescente problema de saúde pública mundial.

    Criação dos filhos: por temerem que os filhos não os amem (e seriam "m" por isso), os pais perderam a autoridade. Os filhos detectam esse medo, manipulam os pais com ele, e os pais se vingam sutilmente, entrando no jogo f&m com os filhos. E não acham que isso é violência...

    Bullying: costumava ser perseguição aos diferentes. Hoje é escancaradamente jogo f&m.

    Drogas e álcool: podem ao mesmo tempo consolar o sentimento de ser um "m", e iludir momentaneamente de que você é um "f".

    Homofobia: pela crença, ser gay é ser "m". A ameaça é enorme, a reação é o que se vê...

    Redes sociais: pareça um "f" e faça os outros se sentirem "m", parece ser seu principal uso.

    Politicamente correto: a moda de se sentir ofendido por tudo é totalmente f&m ("me chamaram de 'm', mas agora eu vou mostrar quem é o 'm'").

    Relação de casais: sim, o sadomasoquismo costuma fazer mais bodas de ouro que o amor, mas veja o teor do maltrato mútuo de um casal e me diga se não é f&m?

    Ciúmes: ser corno, dentro da crença, é ser "m", e a defesa-f pode ser o assassinato.

    Inveja: "tenho ódio de quem é melhor que eu, está me fazendo de 'm'!"

    Política: preciso explicar? O que é a guerra entre "nós" e "eles"?

    Qual a alternativa? Como sempre, a virtude é a melhor luta contra o vício: cultivar a humildade de se saber humano e frágil (e não um "m"), e a ambição de ser bom (e não "f").

    Até lá, espero que a guerra f&m entre Trump e Kim Jon-um não nos mate a todos.

    francisco daudt

    Escreveu até dezembro de 2017

    Psicanalista e médico, é autor de 'Onde Foi Que Eu Acertei?', entre outros livros.

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