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    Francisco Daudt

    Os ofendidos

    08/11/2017 02h00

    Getty Images
    Cérebro humano ilustrado
    Cérebro humano ilustrado

    Parece haver uma epidemia mundial de suscetibilidades exacerbadas. Ou, em linguagem simples, o pessoal anda catando pelo em ovo para se mostrar ofendido.

    Diante da complexidade que é a mente humana, cada sintoma precisa ser examinado através de seus fatores, um de cada vez, como se fosse uma cebola e suas camadas: das mais externas e óbvias para as mais inconscientes e profundas.

    Um fenômeno sociológico como esse mostra fatores muito curiosos, como o da moda, por exemplo. Steven Pinker definiu-a como um instrumento de demonstração de proeminência social, tipo penas de pavão: no topo da pirâmide se desenvolve uma prática tida pelos poucos iniciados como mostra de superioridade. Ela logo começa a ser copiada pelas camadas subjacentes, na tentativa de os menores se assemelharem aos maiores.

    Quando ela se vulgariza (significa "espalhar-se pelo povo"), o topo a descarta e passa a outra novidade.

    No caso dos ofendidos há também o componente da moda, mas é uma moda que não copia os sofisticados do topo, como as gravatas Hermès do Collor, e sim um outro tipo de sofisticação: o politicamente correto.

    Essa outra praga vem se tornando um instrumento de censura prévia e de controle do pensamento "desviante", ao ponto de o Enem tê-lo como critério para dar zero em redação - felizmente barrado pelo STF.
    Há uma clara ligação entre o "p.c." e a onda de ofendidos: um é fruto do outro, foi a sua incorreção política que me ofendeu, viu? O que visa o ofendido é fazer alguém se sentir culpado para que se retrate ou o indenize.

    Neste particular, ele parece ser filho do coitadismo que assola particularmente o Brasil. Aquele que remete à divisão da sociedade em "oprimidos" (os coitados) e "opressores" (os malvados). Essa linhagem de categorias pode ter como avô o "mártir", que na tradição católica "oferece a outra face ao agressor", na busca de fazê-lo se sentir imensamente culpado.

    Ora, o sentimento de culpa é a mais poderosa arma de manipulação inventada pela espécie humana: é quando alguém lhe agradece por ficar de joelhos diante de você.

    Ele também embaralha o pensamento, a ponto de o culpado abrir mão do direito de defesa: repare que, no truque de oferecer a outra face, ninguém pergunta mais o que provocou o primeiro tapa -e olhe que pode ser fruto de insulto extremo. Lembrando que entre os católicos você poderia ir para o inferno por pecado de pensamento!

    Em psicanálise também se usa, para investigar, o "cui prodest" romano ("quem se beneficia do crime?"). Ora, quem ganha com a patrulha de pensamento, o medo de pensar, a "crimideia" orwelliana? Dificilmente seria a democracia. Tem todo o jeito de pensamento autoritário, de controle do povo.

    Eu sei, eu sei, Marcuse, Gramsci, a substituição da luta de classes pela luta opressor/oprimido, comer a democracia por dentro, aparelhamento etc. Mas quis fazer o argumento desde seu beabá. E ele aí está.

    Mas faço a ressalva: há ofensas reais, e elas estão no Código Penal (calúnia, injúria, difamação, discriminação). Há virtude no cuidado em se expressar.

    Digo isso antes que alguém se ofenda

    P.S. - CIÊNCIA NÃO É GASTO, CIÊNCIA É INVESTIMENTO!

    francisco daudt

    Escreveu até dezembro de 2017

    Psicanalista e médico, é autor de 'Onde Foi Que Eu Acertei?', entre outros livros.

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