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    Francisco Daudt

    A fresta

    06/12/2017 02h00

    "Ó Manuel, a tua mulher transa contigo, é por amor ou é por interesse?"

    "Ó Joaquim, deve ser por amor. Ela não mostra o menor interesse..."

    De fato, a despeito de cada um de nós ser um universo complexo de dramas, desejos, memórias, sentimentos e histórias, nossa espécie não parece muito interessada em mergulhar nesse oceano, a menos que efemeramente motivada por Eros. Percebemos o outro e somos por ele percebidos como se vistos por uma fresta de porta.

    Pense bem e com cruel sinceridade: quantas pessoas te conhecem, não digo completamente, que seria impossível, mas 50% de você? Se a resposta encheu os dedos de uma mão, você é um milionário.

    Tudo começa, sim, pela falta de interesse, mas esse conhecimento esbarra em tropeços, como o da leitura tendenciosa. A primeira lição de psicanálise deveria ser: não tire os outros por si. Eles são diferentes!

    Nessa minha curiosa –em mais de um sentido– profissão, venho me dedicando a exercícios mentais bizarros, mas necessários. Os pacientes sofrem por não compreender como funciona a cabeça de seus entes queridos. O exercício consiste em tentar entrar na pele dessas pessoas e buscar algum símile em mim que sirva de ferramenta para aquele propósito. Isso difere de tirar o outro por mim, uso aqui o princípio do romano Terêncio (ca. 195 a.C - 159 a.C.), "nada do que é humano me é estranho".

    Dois casos: como funciona a mente de quem tem alzheimer? Os pais idosos dos pacientes são fonte de incompreensão, impaciência e culpa. É preciso compreendê-los. Se você já tomou um porre, ou ficou chapado de maconha, sabe o que é a perda da memória de curto prazo. Não é amnésia, porque a memória não se forma. Você não saberia o que está escrito no início do artigo, nem eles que você os visitou há pouco. Há flashes de consciência, mas ela estará ligada a arquivos antigos, e deles vêm os sentimentos. De resto, a coisa é semelhante a estar dormindo, mergulhado numa névoa.

    O segundo caso é como funciona a mente de um imbecil. Este tem particular importância, já que eles são a franca maioria da humanidade. Foi por isso que Churchill disse: "A democracia é o pior dos regimes, com exceção de todos os outros". Esse símile é mais fácil: todos somos imbecis em vários momentos da vida, haja vista a adolescência, quando a insegurança e o medo nos levavam ao movimento imbecil típico de se agarrar em certezas extremas, o tal "segura na mão de Deus e vai", não importa o deus, se religioso ou político. É o tempo em que temos certeza de que nossos pais são imbecis...

    Sim, a falta de humildade é uma das características. Outra é a incapacidade Homer Simpson de reflexão: reatividade e imediatismo. Um estímulo será categorizado como bom ou mau, e a reação vem a galope. Ah, claro, as categorias de julgamento são poucas, e o veredicto, rápido. Atualmente, a da moda é: isso me ofende? Ofende alguém? Posso acusar o outro de ofensivo?

    Vem da obsessão em sentir-se superior e defender-se de qualquer coisa que o diminua: o terror de parecer merda.

    Definitivamente, interessar-se por conhecer o outro é um gosto adquirido, como o da música clássica. E tão raro quanto...

    P.S.: Foi um prazer escrever aqui esses anos. Até um dia, abraço a todos.

    francisco daudt

    Escreveu até dezembro de 2017

    Psicanalista e médico, é autor de 'Onde Foi Que Eu Acertei?', entre outros livros.

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