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    Futebol na Rede

    O torcedor em 2034

    DE SÃO PAULO

    15/10/2013 14h15

    Nesta semana, faço uma viagem no tempo até 2034 para trazer o depoimento de um torcedor brasileiro que frequenta as arenas - infelizmente "estádio" é um termo que não constará mais do nosso vocabulário.

    "Eu sou um privilegiado. Graças ao meu pacote Golden Plus Extra de sócio-torcedor do meu clube, aumentei em mais de 100 vezes as minhas chances de conseguir assistir aos jogos do meu time. A disputa para ver um jogo em uma arena é tão grande que os programas de TV em que são feitos os sorteios do ingresso são os que dão mais audiência hoje em dia. Houve uma época em que o sorteado conseguia fazer fortuna vendendo seu ingresso, mas, nos últimos anos, com a obrigatoriedade da leitura da íris do torcedor na catraca, ficou impossível negociar a entrada no mercado paralelo.

    Quando o torcedor é sorteado, ele sabe que terá um atendimento de primeira na Arena. Ele pode chegar até um minuto antes de a partida começar que terá sua vaga demarcada para estacionar na porta e sua cadeira o estará aguardando, com direito a uma cabine fechada e climatizada.

    Os serviços oferecidos ao torcedor também são especiais. Com apenas um toque em um botão da cadeira é possível pedir e receber comida e bebida, isso sem perder um lance da partida. E se o torcedor precisar usar o banheiro, ele tem certeza de que todos estarão limpos e sem filas.

    Aliás, desde 2030, qualquer torcedor pode se sentir único, literalmente, pois foi criada a 'Lei do Torcedor Único'. Sim, agora o público pagante, em qualquer partida no futebol brasileiro, é de apenas UM torcedor.

    Sei que parece esquisito ter apenas um torcedor nessas arenas modernas, mas essa medida foi tomada em nome da segurança. As autoridades orgulhosas mostram com estatísticas que a solução foi eficaz e acabou de vez com a violência nos estádios.

    Os clubes aplaudiram a medida, pois a renda deles foi multiplicada. Os torcedores, na esperança de conseguir ver um jogo em uma arena, gastam cada vez mais em produtos oficiais e nos planos de sócio-torcedor.

    Para as TVs, também foi um grande negócio. Além do aumento nos índices de audiência, as verbas de publicidade cresceram exponencialmente, pois as arquibancadas se transformaram em grandes locais para propagandas virtuais.

    Jogadores e técnicos também se sentem confortáveis com a medida, pois não ouvem mais as ofensas dos torcedores, nem do único torcedor que vai ao estádio, já que ele fica numa cabine que impede que seus gritos sejam ouvidos pelos profissionais. Para incentivar os jogadores, são colocadas gravações de gritos de guerra nos autofalantes e há um sistema de projeção que insere torcedores virtuais nas arquibancadas em alguns momentos de emoção. É até engraçado ver jogadores comemorando com holografias.

    É bom dizer que a 'Lei do Torcedor Único' foi o resultado de várias ações ineficazes tomadas visando à segurança de quem gostava de ir às arenas.

    Meu avô me conta que, quando ele era pequeno, lá pelos anos 1960, e ia aos estádios - era esse o nome? - torcedores dos dois times sentavam lado a lado. Depois, com o crescimento das torcidas organizadas e das agressões, os estádios começaram a ser divididos, com cada torcida sentando em um lado do campo. Mas parece que, mesmo assim, os índices de violência só aumentavam, inclusive tínhamos mortes de torcedores. Aí foi adotado o sistema de apenas uma torcida no estádio.

    Eu - como não sou mais jovem - ainda fui a jogos com apenas torcedores de um time nas arquibancadas. Só que, como não tinha o rival para insultar, simpatizantes e facções do mesmo time começaram a brigar entre si. Você tinha de ver. Em algumas partidas com torcida única, a divisão era tanta que parecia que tínhamos torcedores de dez times diferentes nas arquibancadas. Ninguém mais gritava o nome do time, só o nome da facção a qual era afiliado. Chegamos ao ponto de os torcedores que não participavam das torcidas organizadas criarem um grupo também.

    Com a fragmentação das torcidas, os clubes e os responsáveis pela segurança resolveram dividi-las em blocos, dependendo de qual facção o fã era ligado. Assim, torcedores dos times eram impedidos de entrar em algumas partidas de seu time de coração. Mas esse tipo restrição também não deu muito certo, já que subgrupos eram criados a cada dia, aumentando cada vez mais as disputas. Foi se restringindo tanto o acesso dos fãs aos estádios que não havia outro jeito senão criar a 'Lei do Torcedor Único'.

    Eu sei que todo torcedor é egoísta e se acha mais fanático que qualquer fã de seu clube, mas é muito chato estar sozinho no estádio. Amanhã, a primeira coisa que eu vou dizer para um torcedor do meu time é: 'nós ganhamos'. Um clube de futebol é de todos os torcedores, e nenhum grupo ou ninguém pode se sentir dono dele. E será sempre assim, independentemente de estarmos falando de passado, presente ou futuro."

    Lógico que este texto é uma ficção, mas, infelizmente, com o que está acontecendo hoje nos nossos estádios, não é nada impossível que, em curto espaço de tempo, a "Lei do Torcedor Único" seja criada.

    Até a próxima!
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    Para o Cruzeiro, que, mesmo sendo derrotado em duas partidas consecutivas, por São Paulo e Atlético-MG, só perdeu um ponto - caiu de 11 para 10 - da boa vantagem de pontos para os demais concorrentes, e dificilmente perderá o título do Campeonato Brasileiro deste ano.

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    humberto luiz peron

    Escreveu até dezembro de 2013

    É jornalista esportivo, especializado na cobertura de futebol, editor da revista "Monet" e colaborador do diário "Lance".

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