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    Gregorio Duvivier

    Ator e autor

    10/11/2014 02h37

    A mãe da criança pleiteava uma vaga para a filha no curso do Teatro Tablado. A secretária alegou que não tinha lugar –as aulas do Tablado são disputadas a tapa. A mãe insistia que a filha era um caso especial: "Ela nasceu para o teatro. Desde pequena que é atriz: só faz mentir o tempo inteiro". A secretária respondeu: "me desculpe, mas sua filha não é atriz, sua filha é mau-caráter".

    Existe uma diferença fundamental –embora muitas vezes ignorada– entre mentir e atuar. A mentira do ator serve para dizer alguma verdade. Se não, não presta. O ator não é –necessariamente– um mau-caráter.

    "Nunca conseguiria ser ator, dizem, porque seria obrigado falar coisas que eu não concordo." Mas o ator não é uma marionete. Nunca falei nada que eu não concordasse intimamente.

    Os melhores atores que conheço são também as pessoas mais inteligentes. Selton Mello resolveu dirigir cinema e hoje é nosso melhor diretor. Fernanda Torres resolveu escrever romances e é nossa melhor romancista. O bom ator só escolheu atuar porque não conseguia viver sem isso.

    De todas as pessoas do mundo, os atores são os únicos que podem tirar férias de si próprios –e chamam isso de trabalho. O ator não é –necessariamente– um exibicionista: o ator não precisa do palco para se mostrar, mas para esquecer quem ele é, pelo menos por alguns minutos.

    Ao contrário do que a maioria dos contratantes pensa, o ator não se alimenta de aplauso. Por mais que o ator tenha tentado, a maioria dos estabelecimentos não aceita palmas, urros, abraços ou qualquer outra demonstração de afeto –e, mesmo que aceitasse, não teriam troco.

    Quando um ator emite opinião, sempre surge alguém para dizer: "é só um ator, ninguém deveria se importar com o que um ator tem a dizer". Pensando assim, nunca teríamos lido Shakespeare, Molière, Sófocles, nem Ronald Reagan –pensem nisso, liberais.

    Estou lançando, pela Cia. das Letras, meu primeiro livro de prosa. Chama-se "Put Some Farofa", e reúne crônicas que eu publiquei aqui, cenas que escrevi para o Porta, e alguns textos inéditos.

    Nunca me senti tão exposto. Ao contrário do ator, o colunista, esse, sim, é um exibicionista crônico. Cada texto é uma biópsia. Não consigo parar de pensar que cada pessoa que sorri para mim na rua sabe das minhas convicções mais íntimas –e tenho mais vergonha das minhas convicções que da minha bunda. Não se faz crônica sem se abrir por completo –saudades do teatro, onde guardava minhas convicções e minha bunda ao abrigo do olhar do público (ok, a bunda nem sempre).

    gregorio duvivier

    É ator e escritor. Também é um dos criadores do portal de humor Porta dos Fundos. Escreve às segundas.

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