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    Gregorio Duvivier

    Capricha no chorinho

    DE SÃO PAULO

    22/12/2014 02h00

    Uma lenda linguística afirma que os esquimós têm sei-lá-quantas palavras diferentes para a neve: têm uma palavra só para a neve-fofa, outra para a neve-caindo, outra para a neve-derretendo-na-qual-é-melhor-não-pisar-porque-talvez-você-morra. A conclusão óbvia: a língua traduz as necessidades do povo que a criou –e vice-versa.

    Não é a palavra saudade que mais me faz falta nas outras línguas que não o português. A palavra saudade é supervalorizada porque pode facilmente ser substituída por suas primas-irmãs.

    Na França, onde o crepe é artigo de turista, o recheio costuma ser escasso, seja ele qual for. No Brasil, bastariam três palavras, acrescidas de uma piscadela: "Capricha na nutella?". Não tente pedir capricho na França –a língua não deixa.

    "Seja generoso com a Nutella" –digo para o crepeiro, que me olha de esguelha e me serve uma quantia ínfima, como quem diz: "Você está supondo que eu não seria generoso?". Tento explicar melhor: "Faz esse crepe com o coração?". Ele me olha perplexo, como se coração fosse um tipo de queijo que ele desconhece.

    Um amigo francês-implicante, que são dois termos sinônimos, teoriza o seguinte: o termo "capricho" só existe numa cultura em que as pessoas não têm o costume de caprichar. Em países civilizados, as pessoas capricham naturalmente, logo não há a necessidade do termo. Refuto sua tese com um gesto: abro o crepe e mostro-lhe a falta de capricho. Ele concorda.

    Em inglês, a mesma falta grita. "Caprichar" pode ser traduzido ora como "improve", ora como "perfect". Nenhum dos dois verbos carrega afeto ou generosidade –e não se aplicam à Nutella no crepe. Existe sempre, no entanto, a possibilidade de se pedir um "extra", ou um "supersize", essa invenção americana que consiste na comercialização do capricho –que imediatamente deixa de ser capricho. O capricho é gratuito, assim como o chorinho e a saideira. Ambos os três (falta uma palavra para "ambos os três": trambos) são materializações da mesma coisa: o serviço com afeto.

    O português-brasileiro tem um dicionário inteiro para descrever desvios: trambique, mamata, propina, maracutaia. Como se não bastassem os termos existentes, criamos neologismos: mensalão, petrolão, propinoduto, gato-net.

    Mas nem tudo são trevas: temos também essa palavra linda que diz muito sobre a nossa mania de encher de carinho o que não precisaria ter carinho nenhum. A cultura da mamata é, também, a cultura do capricho.

    gregorio duvivier

    É ator e escritor. Também é um dos criadores do portal de humor Porta dos Fundos. Escreve às segundas.

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