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    Gregorio Duvivier

    Lembrar de esquecer

    26/01/2015 02h04

    Acontece todo dia. Desço para a portaria e, habituado a esquecer as chaves em casa, subo para buscá-las. Só depois de subir e não encontrá-las percebo que já estavam no meu bolso –milagrosamente, não as tinha esquecido.

    Saindo novamente de casa me deparo com a mochila que, essa sim, tinha sido esquecida –tinha esquecido de me perguntar se a estava esquecendo. "Menos mal", penso, "não subi pra nada".

    Desço com a mochila nas mãos e ao chegar no carro, apalpo meu bolso e percebo que deixei as chaves em casa, quando peguei a mochila. Subo para buscar as chaves e percebo que não as tinha deixado no sofá.
    Estavam no bolso da mochila, o tempo todo.

    Saio de casa atrasadíssimo, até perceber, no meio do caminho, que estou sem celular. É só no meio do dia, na hora de pagar o almoço, que percebo que estava, esse tempo todo, sem carteira.

    O leitor maldoso –redundância– dirá que a culpa é da maconha –a maconha, leitor maldoso, certamente não ajuda. Mas não me conheceste, leitor maldoso, aos nove anos de idade. O armário de achados e perdidos da escola era uma espécie de locker particular no qual poderiam botar uma placa: "coisas do Gregorio". Quando precisava de algo, bastava dar uma passada lá: "Tem alguma tesoura minha por aí?". Sempre tinha.

    A solução era enganar o esquecimento. Percebi que esquecer a mochila na escola era a única maneira de ter certeza de que ela estaria lá no dia seguinte. O problema era lembrar de esquecê-la. Quase sempre, esquecia de olvidá-la e acabava voltando para casa com ela. No dia seguinte, invariavelmente, não me lembrava de lembrá-la.

    Talvez tenha algum traço genético envolvido no esquecimento crônico. Dia sim dia não, meus pais me esqueciam na escola. Cansei de ver os amigos indo embora, os professores, os funcionários. Ficávamos eu e o vigia, enternecido, vendo a noite cair. Sentia na pele o que era ser uma mochila minha. Será que aquilo era um castigo divino orquestrado pelos meus pertences, sempre relegados ao esquecimento? Prometia ter mais cuidado com meus objetos. Não cumpria.

    O lado bom disso tudo: fui assaltado e roubaram minha mochila. Num primeiro momento, me desesperei porque tinha tudo lá dentro: carteira, chaves, documentos. Volto para casa e percebo que a mochila devia estar vazia. Tinha esquecido tudo isso em casa.

    gregorio duvivier

    É ator e escritor. Também é um dos criadores do portal de humor Porta dos Fundos. Escreve às segundas.

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