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    Gregorio Duvivier

    O céu fica aqui pertinho

    23/02/2015 03h05

    Ainda são cinco horas da manhã, você pode dormir mais um pouco, o bloco é só às sete, mas você não consegue dormir de tanta ansiedade. Já são seis horas quando você consegue dormir, e acorda só às sete. Merda, que ideia de jerico acordar a essa hora, você pensa, vou voltar a dormir, não, não vai, não, você diz, dropa esse doce, põe purpurina na cara e prende na cabeça essa pomba que você comprou no Saara, aliás, na Saara, O Saara é um deserto, A Saara é um paraíso de produtos brilhantes e baratíssimos, o que prova, você pensou no táxi a caminho do bloco, a supremacia do gênero feminino, acho que o ácido já tá batendo, você pensa, porque acaba de perceber que a barca é um barco que abarca muito mais gente, mas o taxista olha para trás e pergunta: que porra é essa? você responde: uma pomba-gira, e ele não ri, e você aponta para sua cabeça: porque é uma pomba, e ela gira, mas ele não diz nada, só diz você chegou, porque avistou uma concentração de plumas em frente à Candelária, e você já ouve ao longe um ei, você aí, me dá um dinheiro aí e logo de cara encontra por acaso os amigos João e Bruna que te enchem o rosto de purpurina e te enrolam de serpentina feito uma múmia e você abraça esses amigos que ama tanto e que vê tão pouco e quando percebe a banda está tocando "Cidade Maravilhosa" em plena Presidente Vargas e você começa a chorar de alegria e pensa que só pode estar morrendo de tão bom que isso tá, e todos se agacham, e só você fica em pé, e quando você se agacha todos levantam de repente, cantando: ê, ê, êêê, índio quer haxixe se não der serve MD, e já estamos na Senhor dos Passos quando sua amiga Renata te apresenta flocos holográficos, a grande droga desse carnaval, ela diz, são purpurinas geométricas, e com elas faz um losango em volta do seus olhos, e você se vê no espelho dos óculos escuros dela e encontra Tarcísio, nosso governador, e tira uma selfie, na praça Tiradentes e já é quase uma da tarde quando subimos o viaduto e você percebe que perdeu o celular no bloco, deve ter sido lá atrás, na Presidente Vargas, melhor assim, você pensa, só lamenta ter perdido a selfie com Tarcísio, e tira R$ 4 da sunga para comprar um sacolé que vai te servir de almoço, é o sacolau, o sacolé no grau, sou eu, diz a vendedora de sacolau, e você reconhece sua amiga Maria Clara, e pergunta onde ela vai depois dali, mas logo encontra seu amigo Eduardo com um enorme pinto inflável, e abraça Eduardo, e abraça o pinto, e abraçado no pinto você vê a sua ex-namorada deslumbrante de peruca platinada e morre pela segunda vez, mas dessa vez parece que é de vez, e começa a chorar escondido atrás de uma árvore e antes que morra uma terceira dispara em direção ao MAM onde toca "Mamãe Eu Quero" e o vão central do museu faz uma caixa acústica que faz o coração bater gigante e dá de cara com a sua irmã Theodora fantasiada de Gummy Bear e vocês se abraçam e você morre pela terceira vez de amor por essa irmã, e dessa vez é lindo, mamãe eu quero, mamãe eu quero, e você encontra seu amigo Pig, e depois Olívia e Jade e vocês se deitam na grama do Aterro e olham o céu e está parecendo "A Culpa É das Estrelas", alguém diz, e já vai ficar escuro e todos saem em disparada rumo ao centro da cidade onde os tambores de Olokun celebram as nuvens negras que anunciam o temporal que já começa a cair, e não para de cair, e o bloco se dispersa e você está no largo de São Francisco, mas não tão largo para caber seu coração, abraçado com seu amigo Rodrigo, e da banda só ficou um trombonista encharcado, e todos cantam encharcados: ô abre-alas, que eu quero passar, e você se senta no chão com a chuva na cabeça e morre pela quarta vez, de frio, e de repente alguém te abraça, e já somos doze, agora marchando, esse é o bloco dos pinguins, alguém diz, e um pinguim começa a cantar: bandeira branca, amor, não posso mais, eu já falei que eu amo vocês?, diz outro pinguim, pela saudade que me invade eu peço paz, e você morre pela quinta vez, e agora é de felicidade, bandeira branca, amor, não posso mais, eu tô morrendo, você diz, é a quinta vez só hoje, a gente ama você, vocês nem me conhecem, e desde quando precisa?

    gregorio duvivier

    É ator e escritor. Também é um dos criadores do portal de humor Porta dos Fundos. Escreve às segundas.

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