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    Gregorio Duvivier

    A língua impalpável

    15/06/2015 02h00

    Cheguei no vale de U-ah-hu numa manhã de domingo –me fascinava o idioma humha, que conheci através dos escritos de Sapir e Kroeber. Todos os nativos me receberam muito bem. Aquele que parecia ser o pajé cantou para desejar boas-vindas; um ancião esfregou na minha testa um aquênio peculiar, rugoso, parecido com um caju, enquanto balbuciava uma cantiga. Ao longo da cerimônia, todos os habitantes cantavam, o tempo todo, melodias tortuosas. A música era onipresente –mas não foi pronunciada uma palavra sequer. Ou ao menos assim parecia.

    Demorei a perceber que a música era palavra e vice-versa. Não havia nenhum sinal de consoante oclusiva, fricativa, alveolal, nada. O único traço distintivo de significados era a "altura" da voz, isto é, a nota em que ela era emitida. Às vezes, uma diferença mínima, muito menor do que um semitom, mudava todo o significado de uma frase. Kroeber afirma que existem 35 fonemas diferentes num intervalo que, no piano, corresponde a menos de uma oitava.

    Reuni três dos nativos que mais se mostravam interessados em me ajudar e mostrei uma valsa de Strauss. O estranhamento inicial surgiu, claro, do fato daquela pequena máquina emitir som. No entanto, logo em seguida, nas primeiras frases musicais, os três falantes explodiram em gargalhadas. Os ouvintes não conseguiam ver ali nada além de palavras tortas e estranhas, como uma criança brasileira quando ouve russo. Vez por outra parecia surgir na melodia de uma flauta uma frase completa do idioma humha. As crianças repetiam incansavelmente um trecho de Ravel que narraria, segundo elas, a historia de uma senhora que se sentava em um repolho.

    Toda cultura possui uma íntima relação com um ritmo particular, que guia a dança e os cerimoniais religiosos. Entre os falantes do humha, no entanto, a música não tinha qualquer função outra que comunicar. Nas cerimônias religiosas, reinava o silêncio. A música não tinha qualquer propriedade encantatória –representava o mundano, a comunicação trivial, objetiva. Tampouco havia dança, pois a música não dizia nada ao corpo.

    O que mais custei a entender foi o fato de que, embora a música estivesse em todo lugar, ou justamente por isso mesmo, não havia música em lugar nenhum. Porque havia música o tempo todo, ninguém conseguia enxergá-la. A música não fazia dos Humha um povo mais feliz –ao contrário, percebi que havia entre eles uma falta incurável, um buraco impreenchível, onipresente. Era a música.

    gregorio duvivier

    É ator e escritor. Também é um dos criadores do portal de humor Porta dos Fundos. Escreve às segundas.

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