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    Gregorio Duvivier

    Luisa

    07/09/2015 02h02

    Luisa era cinco anos mais nova que eu –uma menina magrela que lia livros de adulto pelos cantos da escola. Quando encontrei com ela aos 15 (eu tinha 20), Luisa já tinha se tornado a mulher mais bonita do mundo, e isso não é exagero, ela ficou bonita de um jeito que não parecia humano, não parecia certo com os outros seres humanos, e ainda por cima falava seis línguas, e lia todos os livros, e estava indo estudar em Paris, não era justo com a humanidade, me apaixonei, e ela foi pra Paris. Ficamos amigos virtuais.

    Ela me contava as agruras de lá, e eu as de cá, e com o advento do Whatsapp passamos a dividir selfies e áudios e prints e memes. Não era fácil morar sozinha na capital da melancolia, ela dizia, e ainda assim se formou com louvor, apesar das faltas causadas pela depressão. Voltou para o Brasil com a doença controlada por remédios tarja-preta.

    "Vamos encontrar? Queria te dizer uma coisa", ela falou na sexta. Marcamos um café na segunda-feira, dia 31, às 16h. Às 15h30, mandou uma mensagem dizendo que já estava lá. Quando cheguei, Luisa estava tomando uma garrafa de vinho branco, daquelas pequenas. Na mesa, um livro laranja: "Antigone", do Jean Anouilh: "Não me canso de ler esse troço." E me mostrou a parte em que o Coro diz, e que, por acaso ou não, eu sei praticamente de cor: "Na tragédia, é tudo mais tranquilo. É relaxante, a tragédia, porque não existe esperança –a maldita esperança– nela a gente é capturado como um rato e só nos resta gritar –não gemer, nem reclamar– somente berrar com todas as forças aquilo que a gente nunca disse, aquilo que a gente nem sabia que sabia." Ela tinha lágrimas nos olhos. Pensei que talvez o que ela quisesse dizer era que ela estava grávida, e o filho era meu, e fiquei estranhamente feliz com essa hipótese, mas depois lembrei que isso seria estranhíssimo, porque nunca transamos.

    Andamos do café até a minha casa. Subimos pro terraço. Ela tirou um Parliament da cigarreira, acendeu e disse que se arrependia de não ter tentado ser atriz. "Você tem 24 anos, ainda dá tempo". Ela disse que era impossível, que o auge dela tinha passado, que agora ela queria ser dona de casa. Conversamos sobre o Liceu, nossos pais, nossos professores, paixões platônicas e desafetos reais, e uma hora chamei um táxi para ela porque precisava trabalhar. Esqueci de perguntar o que ela queria me dizer.

    Na terça-feira passamos o dia trocando piadas por Whatsapp, cada qual contando seu dia, até que ela parou de responder.

    Só penso em tudo o que eu poderia ter dito para evitar que ela se matasse, penso que os cigarros dela ainda estão aqui no cinzeiro, penso que eu tinha que ter ligado quando ela não respondeu minha última mensagem, penso que ela nem sequer me disse o que ela queria me dizer. Mas logo penso na Antígona, e lembro que "na tragédia ninguém tem culpa, uns matam, outros morrem", penso que talvez fosse isso o que ela queria tanto me dizer, penso na beleza que a Luisa via na fatalidade, e penso que a beleza da Luisa tinha a ver com a fatalidade, como a beleza dos cometas, das supernovas, a beleza das cidades condenadas a afundar.

    gregorio duvivier

    É ator e escritor. Também é um dos criadores do portal de humor Porta dos Fundos. Escreve às segundas.

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