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    Gregorio Duvivier

    Só neste país é que se diz neste país

    12/10/2015 02h00

    Sou apaixonado por Portugal. Mas (ou talvez por isso mesmo) acho um país difícil de entender. O bacalhau, por exemplo: como pode o prato típico de Portugal ser um peixe que só se encontra no mar da Noruega, Islândia ou do Canadá? Como pode ser preciso navegar milhares de quilômetros pra se pescar a matéria-prima das suas datas festivas? Que tipo de peixe é esse que já nasce salgado e sem cabeça?

    Visitar Portugal é —no mínimo— vertiginoso —como se olhar num espelho que deforma— muitas vezes pra melhor. Percebemos que nosso vinho é pior, nosso queijo é pior, mas que nosso apego às vogais, por exemplo, é muito maior. Na palavra confortável: temos carinho pelo primeiro "o", pelo segundo "o", pelo "á", e até pelo "e". Os portugueses não têm nenhuma relação afetiva com as vogais. A palavra confortável, em Portugal, pronuncia-se cnfrtávl. Nada menos confortável. Parece que querem logo chegar ao final da frase. Quase todas as vogais caem no esquecimento, de modo que o resultado final frequentemente parece que se está lendo uma palavra digitada por alguém que na verdade só esbarrou no teclado. Kdsrfsts.

    Perceba que, se alguém disser "chlént!", não estará falando o dialeto iídiche, mas "excelente". Acharam que a palavra já tinha "e" demais. Por que pronunciar o "e" quatro vezes? Basta uma! É a chamada austeridade vocálica.

    Difícil dizer que somos iguais, falando dialetos tão diferentes. No entanto, algumas semelhanças são inegáveis.

    Herdamos no sangue lusitano (além do lirismo, é claro) a vocação para o fatalismo. Conforta-nos pensar que vivemos num país amaldiçoado —e gostamos de repetir isso, como se isto melhorasse algo à nossa condição. Como diz o (português, claro) Sergio Godinho: "Só neste país é que se diz 'só neste país'". Engana-se o Godinho. O que mais se diz no Brasil é "só mesmo no Brasil".

    Não há um português que não se refastele em enumerar as mazelas do país. E nisso brasileiros somos idênticos: na certeza de que estamos fritos. "É por isso que o Brasil não vai pra frente." Se tem algo que sabemos fazer, além de não ir pra frente, é enumerar os motivos pelos quais não estamos indo pra frente.

    Numa eleição popular que visava escolher o maior português de todos os tempos, em que concorriam Camões e Infante D. Henrique, quem ganhou foi o Salazar, ditador por 40 anos. Até nisso nos parecemos: na saudade de tempos piores.

    Talvez seja por isso a gente não vai pra frente. Será mesmo que a gente quer?

    gregorio duvivier

    É ator e escritor. Também é um dos criadores do portal de humor Porta dos Fundos. Escreve às segundas.

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