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    Gregorio Duvivier

    Contratempos

    30/11/2015 02h00

    Ele nunca entendeu o tédio, essa impressão de que existem mais horas do que coisas para se fazer com elas. Sempre faltou tempo para tanta coisa: faltou minuto para tanta música, faltou dia para tanto sol, faltou domingo para tanta praia, faltou noite para tanto filme, faltou ano pra tanta vida.

    Existem dois tipos de pessoa. As pessoas com mais coisa que tempo e as pessoas com mais tempo que coisas para fazer com o tempo.

    As pessoas com menos tempo que coisa são as que buzinam assim que o sinal fica verde, e ficam em pé no avião esperando a porta se abrir, e empurram e pisam nas outras para entrar primeiro no vagão do trem, e leem livros que enumeram os "livros que você tem que ler antes de morrer" ao invés de ler diretamente os livros que você tem que ler antes morrer, não percebendo que o livro "livros que você tem que ler antes de morrer" não consta na lista de "livros que você tem que ler antes de morrer" e que logo não vale a pena perder tempo com isso.

    Esse é o caso dele, que chega no trabalho perguntando onde é a festa, e chega na festa querendo saber onde é a próxima, e chega na próxima festa pedindo táxi para a outra, e chega na outra percebendo que era melhor ter ficado na primeira, e quando chega em casa já tá na hora de ir para o trabalho.

    Ela sempre pertenceu ao segundo tipo de pessoa. Sempre teve tempo de sobra, por isso sempre leu romances longos, e passou tardes longas assistindo pela milésima vez à segunda temporada de "Grey's Anatomy" mas, por ter tempo demais, acabava sobrando tempo demais para se preocupar com uma hérnia imaginária ou para tentar fazer as pazes com pessoas que nem sabiam que estavam brigadas com ela ou escrever cartas longas dentro da cabeça para o ex-namorado, os pais, o país, tudo junto, ou culpar o sol, ou a chuva, ou comentar "e esse calor dos infernos?", achando que a culpa é do mau tempo quando na verdade a culpa é da sobra de tempo, porque se ela não tivesse tanto tempo não teria nem tempo para falar do tempo.

    Quando se conheceram, ele percebeu que não adiantava correr atrás do tempo porque o tempo sempre vai correr mais rápido e ela percebeu que às vezes é bom correr para pensar menos, e pensar menos é uma maneira de ser feliz, e ambos perceberam que a felicidade é uma questão de tempo. Questão de ter tempo o suficiente para ser feliz, mas não o bastante para perceber que essa felicidade não faz o menor sentido.

    gregorio duvivier

    É ator e escritor. Também é um dos criadores do portal de humor Porta dos Fundos. Escreve às segundas.

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