Acontece toda vez que bebi demais: entro no banheiro e me deparo com uma cena estranhíssima. Um sujeito baixinho, com a barba por fazer e um calvície precoce, me olha no fundo dos olhos. "O que é que você quer?" Percebo, aos poucos, que seu corpo obedece ao meu comando, mas reluto a entender que sou eu. Entendo que talvez eu esteja me vendo daquele jeito. Reluto a acreditar que "sou" aquilo. Menos ainda: que sempre fui aquilo. "É assim que as pessoas sempre me viram? Não tem nada a ver comigo."
Ninguém escolheu o corpo que habita –o nascimento é uma espécie de casamento arranjado, uma decisão da qual você, como as princesas do século 13, não participou. Certamente, aposto, teria escolhido outra pessoa, talvez em outro país, quiçá em outra época. Mas fazer o que? Aos poucos você foi aprendendo a ser feliz com esse cônjuge obrigatório. Relevou a barriga, tentou perdoar o ronco, a intolerância a lactose, o sono leve demais. Hoje vocês se aguentam –como aqueles casais velhos que não brigam, mas tampouco se falam.
| Catarina Bessell | ||
 |
||
Não quero abalar essa relação –sei que não foi fácil conquistar essa paz– mas me sinto no dever de avisá-los de um dado alarmante: o número de suicídios por ano passou o número de homicídios por ano. Sim. Isso é apavorante. De todas as pessoas do mundo, você é a que tem mais chances de te matar. Depois que percebi isso, nunca mais olhei pra mim do mesmo jeito.
Esqueça o vizinho psicopata. Esqueça os stalkers, os franco-atiradores, os terroristas, os bandidos ou a polícia. Vá ao banheiro. Acenda a luz. Olhe no fundo dos seus olhos. "Eu sou fofo", você talvez pense. Não se deixe enganar pelas aparências. Esse urso panda inofensivo é o seu mais provável assassino. Sim, essa pessoa no espelho pode estar planejando a sua morte.
Não adianta fugir. Ela é o pior tipo de assassino em potencial: vai estar sempre na sua cola. Não adianta conseguir uma ordem de restrição. Tampouco adianta andar armado. Você tem acesso às mesmas armas que ela. Ela antecipa seus movimentos. Impossível surpreendê-la. Não adianta partir pra porrada. Em ambos os casos, ela ganha.
Olhe no fundo dos olhos dela. Peça desculpas. Tudo o que você disse ou fez não foi por mal. Pode não ser o casamento ideal, mas vocês já viveram tantas coisas juntos. Você sofreu por viver dentro dela, mas ela também sofreu por ter você ali dentro. Vocês se merecem, confia em mim. Se tudo der certo, vamos reverter essa estatística.
É ator e escritor. Também é um dos criadores do portal de humor Porta dos Fundos. Escreve às segundas.