• Colunistas

    Saturday, 04-May-2024 20:22:26 -03
    Gregorio Duvivier

    Pós-verdade dá a impressão de que a política já foi o lugar da verdade

    06/03/2017 02h00

    Catarina Bessel/Folhapress
    Ilustração Gregorio Duvivier de 6.mar.2017

    "Pós-verdade" foi eleita a palavra do ano de 2016 pelo dicionário "Oxford". A imprensa explica que Trump ganhou por causa da pós-verdade —"o presidente inventa fatos que não ocorreram mas o povo não se importa e acredita em tudo o que ele diz". Trump, estranhamente, também credita à pós-verdade a enxurrada de críticas que recebe —"a imprensa inventa fatos que não ocorreram mas o povo não se importa e acredita em tudo o que ela diz".

    Num camarote de cerveja, o ex-futuro-prefeito Pedro Paulo explicou, essa semana, porque é que o acusam de bater na mulher: "Vivemos a era da pós-verdade". O olho roxo não passa de um pós-olho, o dente quebrado não passa de um pós-dente. "Vivemos na era da pós-verdade" is the new "exagerei nos remédios pra labirintite".

    Não concordo com a ideia de que os fatos, hoje em dia, já não importam —não porque os fatos, hoje em dia, importem, mas porque dizer que eles "já não importam" dá a impressão de que em algum momento da história eles importaram. Como se vivêssemos, antigamente, no mundo idílico da verdade nua e crua, um mundo em que os jornais se atinham aos fatos, os governantes só falavam do que tinham certeza, os articulistas jamais ousavam tecer hipóteses que não fossem cientificamente comprovadas, até que a internet —sempre ela— inventou a manipulação —Eureka! E a partir daí tudo degringolou. Só que não.

    A Guerra de Troia. O caso Dreyfus. O incêndio do Reichstag. O tiro no pé do Lacerda. A cenoura de Mario Gomes. Nunca houve, em toda a história, um fato inconteste. Contra argumentos, os fatos nunca serviram pra nada. Primeiro inventa-se uma hipótese, depois é que se inventa os acontecimentos que a validam.

    Já dizia Trótski: não existem fatos, só manipulações. Só que não foi ele que disse. Foi Nietzsche. E não disse isso. Mas o que importa? Nunca importou. O ponto de vista cria o objeto, disse um linguista. Ou não disse. Vai saber. Quer dizer: hoje em dia, graças à possibilidade de fazer registros audiovisuais e checar informações na internet, inventar não-fatos ficou muito mais difícil.

    O século 21 não inventou a mentira mas o "fact checking". Hoje é muito mais fácil desmascará-la. E no entanto imprensa e classe política continuam mentindo igual. O que mudou não foi uma maior incidência de mentiras mas o fato de que todo o mundo sabe que é mentira mas já ninguém se importa com isso. Acho que estamos vivendo a era da pós-mentira.

    gregorio duvivier

    É ator e escritor. Também é um dos criadores do portal de humor Porta dos Fundos. Escreve às segundas.

    Edição impressa

    Fale com a Redação - leitor@grupofolha.com.br

    Problemas no aplicativo? - novasplataformas@grupofolha.com.br

    Publicidade

    Folha de S.Paulo 2024