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    Guilherme Wisnik

    Extinção

    28/12/2015 02h00

    Nada menos apropriado para o início de um novo ciclo do que escolher o tema do fim, ou da extinção. Pois é assim que eu decidi começar minha coluna na Folha, no apagar das luzes de um ano que parece teimosamente não terminar. Sintomaticamente, duas ótimas publicações surgiram no final desse ano tematizando a questão, no encontro entre as discussões urbanas e antropológicas: a "Piseagrama" número 08, de Belo Horizonte, e a "Revista Centro" número 0, de São Paulo. Ocorre que a realidade parece se antecipar à crítica. Por exemplo, enquanto a "Piseagrama" traz uma matéria sobre a extinção do rio São Francisco, a realidade produz a extinção mais evidente e instantânea do rio Doce, no mesmo Estado de Minas Gerais.

    Com o fim da Guerra Fria, na passagem dos anos 1980 para os 90, vivemos um estranho interregno ideológico dominado pela ideia de "fim da história". Algum tempo depois, percebeu-se que o inimigo não desaparecera como parecia, e sim apenas mudara de lugar. Hoje ele não é mais figurado no outro ideológico (capitalista ou comunista), e sim tanto nas irrupções difusas e incontroláveis da natureza, como terremotos, furacões e tsunamis, quanto nas ações terroristas movidas por conflitos religiosos e étnicos. Poderíamos, ainda, acrescentar os desastres ambientais que parecem ter sido frutos de ações terroristas, como no caso da Samarco. Difusos e dificilmente interceptáveis, esses novos inimigos alimentam um estado de paranoia social muito maior.

    Um pensador que percebeu precocemente esse estado de paranoia escatológica no qual nos encontramos hoje, e o antecipou, foi Marshall Berman. No início dos anos 80, escrevendo sobre a "aventura da modernidade", caracterizou a revolução industrial como um "pacto fáustico", através do qual o homem assumia forças sobre-humanas em sua capacidade de transformação do planeta em energia e consumo incessantes. No entanto, observou, parecia aproximar-se a hora em que o custo desse pacto ia ser cobrado. Hoje a extinção do homem e do planeta são questões prementes, consequências claras de uma ganância "pactária", cegamente suicida.

    O que me parece é que a aceleração cada vez mais alucinada do ritmo do consumo na sociedade globalizada produziu uma amplificação inaudita do conceito de obsolescência programada. Se ontem apenas objetos como geladeiras, carros e computadores eram feitos para serem trocados o mais rápido possível, hoje essa lógica presentista e predatória se expandiu para o próprio território do planeta. É o que nos mostra a hiperurbanização chinesa, que parece começar tudo a partir do zero. Igualmente, é o que constatamos quando percebemos o quanto eventos esportivos de escala mundial se tornaram, em essência, enormes operações imobiliárias.

    Acrescentando sem parar imensas carcaças sólidas ao planeta, necessárias apenas para manter vertiginosamente acelerada a roda do consumo, e da fortuna, vamos tornando a própria terra na qual pisamos cada vez mais obsolescente, já que o planeta parece ter mesmo sido feito para ser consumido até o fim de forma especulativa. Daí o lado positivo da crise atual, que começa a separar um pouco esses irmãos siameses chamados "crescimento" e "consumo". Precisamos de outros modelos de desenvolvimento.

    guilherme wisnik

    Escreveu até janeiro de 2017

    É professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP e crítico de arte.

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