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    Guilherme Wisnik

    O lugar da experiência

    11/01/2016 02h00

    A arquitetura e o projeto museográfico do Masp nunca foram nem serão unanimidades. Nem os seus cavaletes de concreto e vidro têm a função de oferecer uma solução para os museus em geral. E nem o reconhecimento de seus valores intrínsecos significa uma mitificação anacrônica de Lina Bo Bardi.

    Argumenta-se que esse sistema expositivo impõe um modo disperso de apreensão das pinturas, uma vez que a transparência dos suportes de vidro faz com que vejamos muitas delas simultaneamente. E foi de fato contra o culto áulico da obra de arte autônoma, contra o "ar de igreja" dos museus de paredes brancas e corredores, que Lina concebeu o Masp. Retirada a parede, as pinturas perdem o anteparo que fazia delas "janelas para o mundo". São agora objetos materiais, vistos de forma relacional, flutuando no espaço, e brilhando com suas molduras douradas entre o branco da cobertura e o negro do piso.

    Não é possível discutir a pinacoteca do segundo andar do Masp em abstrato, sem levarmos em conta a fortíssima experiência estética que ela nos causa, na interação entre a arquitetura, a museografia e as obras de arte. E essa experiência em sentido forte, que nos assalta hoje como um espanto, é o que faz com que o projeto de Lina, retirado em 1996 e remontado agora com adaptações pelo Metro Arquitetos, permaneça extremamente atual.

    Muitas das ressalvas técnicas foram corrigidas. Películas que filtram os raios ultravioleta e infravermelho foram instaladas nas fachadas. Atrás das telas, uma nova barra de aço inox foi fixada, permitindo tanto nivelá-las a partir de apenas dois furos de fixação nos vidros, quanto substituir as obras no mesmo suporte. Ainda, amortecedores de neoprene nas bases absorvem as vibrações do edifício, reduzindo-as a níveis baixos.

    Nas últimas décadas, os museus foram integrados à economia do consumo e do turismo. Mesmo com a mais firme das intenções, olhamos para um quadro já pensando no próximo, sentindo-nos autorizados a apreciá-lo, de forma fugaz, apenas depois de ler a sua etiqueta e haver reconhecido nela um nome importante.

    Situando todas as informações sobre as telas nos versos dos suportes, a museografia do Masp desmonta essa relação ansiosa e produtivista com as pinturas, fundando a nossa experiência no embate real com as obras em si. Ao mesmo tempo, permite-nos uma proximidade quase inacreditável, o que faz com que possamos sim nos concentrar na apreciação isolada de cada obra, admirando as imensas diferenças de fatura material entre telas de Rafael e de Van Gogh, por exemplo.

    Revelando a cunha de madeira da base, os chassis e bastidores das telas e suas peças de fixação, Lina opera pelo desnudamento, pela montagem de elementos em choque, assim como Brecht, Eisenstein e tantos outros artistas de vanguarda. Mas se essa perda da aura da obra de arte é uma profanação, a flutuação das telas em suportes de vidro tem algo de miraculoso, o que lhes restitui parte do mistério. Nada disso me parece datado ou inadequado para um tempo, como o nosso, em que predomina um ilusionismo raso. Por isso, muitas das reações contra os cavaletes do Masp que se perpetuam através do tempo me parecem não passar de aristocratismo de gosto revestido de especialismo técnico.

    guilherme wisnik

    Escreveu até janeiro de 2017

    É professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP e crítico de arte.

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