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    Guilherme Wisnik

    Pedágio para pedestres?

    22/02/2016 02h00

    Certa vez, alguns anos atrás, em um dia de muito sol, tive uma visão estranha quando estava para atravessar a rua da Consolação. Não sei se por causa do torpor provocado pelo calor, ou pela irritação –misturada com resignação– com a mesquinhez das calçadas, estreitas e cheias de lixo, me vi absorto em pensamentos ao lado do semáforo de pedestres. E como o sinal verde tardava a abrir, tive a impressão (a visão) de que ele não abriria nunca mais, a menos que eu eu colocasse ali dentro uma moeda.

    Continuei o meu caminho abatido por esse delírio. Lembrei que na Itália, dentro de muitas igrejas, pinturas importantes ficam na escuridão até que alguém deposite moedas em um canhão de luz, que então a ilumina por um minuto. É a insidiosa monetarização de tudo. Mas, apesar disso, há naquele caso uma certa graça. Um encanto em você mirar um enorme Caravaggio no escuro, pouco a pouco, e vê-lo de repente se iluminar, como que por milagre, porém de modo fugaz, para logo sumir de novo. Justamente Caravaggio, é o que mais me lembro, cujos quadros têm sempre fortes contrastes entre claro e escuro, com maravilhosos faixos de luz que entram em cena para revelar algum enigma, às vezes terrível.

    Sem querer, eu tinha adaptado essa memória onírica, de uma experiência de turista, para o cotidiano agressivo da minha cidade. Mas se lá existe algo de sonho nessa forma de cobrança a conta gotas, a hipótese que eu imaginei para aqui me pareceu de um realismo mórbido. Quanto tempo ainda vai demorar até que o pedestre, em São Paulo, tenha que pagar para atravessar a rua? Quanto tempo vai precisar para que substituam o botão verde por um orifício para moedas, ou um leitor magnético de cartões? Talvez não muito. Nesse caso, talvez uma massa de sujeitos desmonetarizados, isto é, de não-cidadãos, se acumule junto aos faróis, esperando pegar carona em uma "onda verde", quando o feliz detentor de um selo "sem parar" para pedestres bloqueie momentaneamente o fluxo de carros.

    Os últimos três anos em São Paulo, sob a gestão de Fernando Haddad, têm apontado para um prognóstico diferente desse, em que predominava soberano um cidadão motorizado, blindado e capaz de consumir. É outra a visão de cidadania e de cidade presente, por exemplo, no programa "De braços abertos", nas ciclofaixas, e na avenida Paulista transformada em parque aos domingos. Acostumado a se proteger da cidade em redutos privados, o paulistano tem hoje cada vez mais prazer em estar nas ruas, nas calçadas e nas praças, ainda que elas deixem muito a desejar. Não é por acaso que o Carnaval de rua cresceu tanto. E, em geral, de uma maneira bela, generosa, fraterna, erótica.

    Desreprimindo o hedonismo, São Paulo vai deixando, pouco a pouco, de ter a sua imagem marcada pela "dura poesia concreta de suas esquinas", embora não deixe de ser violenta e segregadora. Não posso crer que a tradição bipolar da cidade nas eleições –oposta à do Estado, obsessivo por um partido único, vá nos levar a perder todas essas conquistas. Sei bem que a recandidatura de Haddad carrega nas costas o peso dos erros do PT. Mas, ao mesmo tempo, não imagino que o atual florescimento cidadão de São Paulo possa deixar de se traduzir em uma afirmativa maturidade política.

    guilherme wisnik

    Escreveu até janeiro de 2017

    É professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP e crítico de arte.

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