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    Guilherme Wisnik

    Posse ou uso da cidade?

    13/06/2016 02h00

    Apropriação do espaço público. Essa é uma expressão que se tornou palavra de ordem entre os movimentos que hoje promovem usos novos e criativos de determinados lugares da cidade, questionando o sentido tradicional de "público" como conceito que, por oposição a "privado", se remete à democracia grega e ao iluminismo francês.

    Mas a expressão pode parecer perniciosa, pois apropriação significa tomar posse. Por essa via, a tão falada apropriação do espaço público poderia ser vista como uma forma de privatização. Mas, na maioria dos casos, não é disso que se trata. O ato de tornar próprio um lugar da cidade ou um edifício, por parte de uma pessoa ou de um grupo, tem assumido hoje sentidos que não se confundem com o da expropriação. Muito ao contrário, tornando próprios certos espaços através da ocupação provisória, grupos que defendem o "direito à cidade" conseguem melhor adequá-los a certas finalidades a partir do uso, através de práticas coletivas, compartilhadas, autogestionárias e, com frequência, fortemente políticas.

    Essa forma de fazer política se distancia das práticas tradicionais, baseadas na representação partidária, hoje muito desgastadas. E indica uma mudança crucial no modo de se relacionar na cidade. Mudança pela qual a noção de posse vai sendo substituída pela noção de uso como valor predominante. Vale notar que, se os movimentos sociais brasileiros estiveram, desde o fim da ditadura militar, estruturados em torno da causa habitacional, tendo como pano de fundo o sonho da casa própria, hoje a pauta da tarifa zero incide diretamente na questão do uso cotidiano. Igualmente, a batalha pelo Parque Augusta, as ações no largo da Batata ou as discussões em torno do destino do Minhocão revelam o mesmo fenômeno, que, no entanto, não se esgota aí. As recentes ocupações das escolas estaduais pelos estudantes secundaristas em São Paulo, bem como as ocupações de unidades da Funarte em diversas cidades do país, e, ainda, o fortalecimento de redes de compartilhamento em grande escala, como o Uber Pool e o Airbnb, são fenômenos da mesma ordem. Apropriação como forma de ocupação temporária, em que a propriedade do solo, ou do imóvel, é questionada em nome do direito de uso. "A escola é nossa", defendem os estudantes, descobrindo-se, através de ocupações autogestionárias, sujeitos de suas próprias histórias.

    É interessante perceber a emergência atual do conceito de apropriação, na cidade, em relação ao contexto artístico. Colando recortes de jornal nas telas (cubistas), ou retirando objetos do mundo comum, tais como mictórios, e contrabandeando-os de forma irônica para o universo da arte (dadaístas), os artistas de vanguarda instituíram a apropriação como uma prática decisiva no campo da arte cem anos atrás. Prática essa que passava a deslocar as concepções anteriores do artista como um criador (repetindo o gesto demiúrgico de Deus) ou um produtor (estendendo a longa tradição artesanal).

    O artista apropriador é um ladrão, pois trabalha sobre um universo de coisas já existentes, reciclando-as. Nesse sentido, cria sampleando motivos emprestados, sem querer fabricar coisas novas a partir do zero em um mundo já lotado de objetos. Operando com a efemeridade, coloca o valor de uso acima do valor de posse.

    guilherme wisnik

    Escreveu até janeiro de 2017

    É professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP e crítico de arte.

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