• Colunistas

    Saturday, 04-May-2024 18:34:47 -03
    Guilherme Wisnik

    São Paulo profunda

    11/07/2016 02h00

    Nesse sábado abriram duas excelentes exposições na Casa da Imagem, em São Paulo: "Atlas fotográfico da cidade de São Paulo e seus arredores", de Tuca Vieira, e "Garagem automática", de Felipe Russo.

    Olhares contemporâneos sobre São Paulo, os dois trabalhos são, no entanto, opostos e complementares. Pois se as fotos de Tuca Vieira varrem toda a extensão da mancha urbana metropolitana, num esforço de levantamento por acúmulo da imagem da cidade, as de Felipe Russo mergulham no poço escuro dos seus edifícios garagem, registrando a solidão opressiva e algo sublime dessas carcaças urbanas feitas para empilhar carros. Significativamente, desde a própria varanda da Casa da Imagem, olhando-se para leste, vemos um skyline baixo em que se destaca uma torre opaca: o Edifício Garagem Automática 25 de março.

    Autor da famosa foto da favela de Paraisópolis, ícone na última década, Vieira se lançou a um novo desafio pelo avesso: buscar a síntese pela exaustão. Qual é a verdadeira cara de São Paulo? Como representar essa cidade inapreensível? Perseguindo tal questão, mas reconhecendo a impossibilidade de resolver a contento a empreitada delirante, o fotógrafo adotou um método científico: tomando um guia de ruas da cidade, resolveu realizar uma foto para cada página dupla.

    Agora, depois de dois anos de trabalho hercúleo percorrendo todos os quadrantes da cidade, o conjunto de 203 imagens está finalmente pronto. E impressiona pela capacidade de expressar singularidades sob um tom de monotonia. Marcada pela urgência, pelo improviso e pela estética inacabada, a cidade se espraia no território na mesma medida em que concentra recursos. Mas na escala babélica desse atlas, somos absorvidos pela recorrência de tons cinza, bege e creme nas construções, e pelo contraste marcado entre grandes obras de infraestrutura e a dominância da autoconstrução e da informalidade.

    Já o ensaio visual de Felipe Russo procura flagrar São Paulo por um elemento muito marcante da sua paisagem construída, mas em geral pouco percebido: os edifícios garagem. E mais: elege só os automáticos, aqueles dotados de elevador. Sem janelas, e muitas vezes sem acabamentos, essas toscas "máquinas de guardar máquinas", como diz o fotógrafo, são presenças mudas na cidade, enigmáticas lápides urbanas que povoam a sua área central.

    Por dentro, são feitos de grossas lajes de concreto recobertas de fuligem, e equipados com cabos de aço, roldanas, alavancas, polias e correntes, como cárceres piranesianos da cidade industrial. Russo inclui também, na primeira sala, um som ambiente com o ronco grave de motores, buzinas e guinchos de elevadores, além de, em outra sala, um singelo vídeo mostrando o movimento automático dos painéis de controle. Não vemos pessoas nem carros, apenas máquinas fossilizadas que estão ligadas em moto-perpétuo há sessenta anos. E praticamente sentimos a sua vibração monocórdica, como se a cidade tivesse deixado de existir.

    É um alento que em um momento de corte geral de investimentos, e de desmonte da política cultural no plano nacional, um museu público (do município) abra uma exposição com essa qualidade. E, depois de tamanha experiência de viagem pelos labirintos verticais e horizontais da cidade, percebemo-nos ao lado do Pátio do Colégio, que parece mais irreal do que todas as fotografias.

    guilherme wisnik

    Escreveu até janeiro de 2017

    É professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP e crítico de arte.

    Edição impressa

    Fale com a Redação - leitor@grupofolha.com.br

    Problemas no aplicativo? - novasplataformas@grupofolha.com.br

    Publicidade

    Folha de S.Paulo 2024