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    Guilherme Wisnik

    Cerimônia mostrou um Brasil que ainda pulsa e se atualiza diante de nós

    08/08/2016 02h00

    Diego Padgurschi/Folhapress
    RIO DE JANEIRO, RJ, BRASIL - 05-08-2016: ABERTURA DOS JOGOS OLIMPICOS: Jaine Espírito Santo, 30, com o marido Hermes e o filho Emerson do morro da Mangueira acompanham a abertura das Olimpiadas, com vista para o Maracana. (Diego Padgurschi / Folhapress - ESPORTE) ***EXCLUSIVO***
    Família acompanha abertura da Olimpíada no Maracanã vista do Morro da Mangueira

    De terno azul, e com seu característico vibrato na voz, Paulinho da Viola tocou e cantou lindamente um trecho do hino nacional brasileiro, fazendo a marcha triunfal deslizar para a síncope do samba. "Gigante pela própria natureza/ És belo, és forte, impávido colosso/ E o teu futuro espelha essa grandeza". São versos do hino que, em tal contexto, ganharam uma beleza aguda e cruel.

    Quantos sonhos foram empenhados na realização dessa Olimpíada? Modernização da infraestrutura urbana e despoluição da baía da Guanabara eram promessas de um legado aparentemente plausível para um integrante dos Brics que vivia anos de "espetáculo do crescimento".

    Muito do que houve de melhor no processo de modernização cultural do Brasil ao longo do século 20 passou pela elaboração artística do tema do atraso: um país que foi colônia, que massacrou os índios e explorou o trabalho de escravos africanos, tentava saltar para a era moderna por sobre esse fosso histórico. E, em grande medida, conseguiu elaborar artisticamente essas questões de formas ricas, em um arco histórico que vai da antropofagia à "estética da fome". Tudo isso, tendo como base uma sociedade miscigenada, economicamente periférica, e formada em clima tropical. Que soube elaborar uma voz potentemente afirmativa como expressão cultural da posição singular que ocupa no mundo.

    Ocorre que na conjuntura geopolítica do novo milênio, pareceu-nos por um momento que aquela formulação histórica baseada no binômio modernidade e atraso havia sido superada, e que a mitologia sebastianista do Brasil como "país do futuro" estava em vias de se realizar. Terrível engano, que as derrocadas política e econômica do país vieram demonstrar, e que os graves problemas de construção e de concepção da Vila Olímpica confirmam.

    No entanto, felizmente não foi isso o que apareceu na cerimônia de abertura dos jogos, concebida e protagonizada por uma equipe de artistas de primeira linha –diferentemente do que ocorreu na Copa do Mundo–, e feita com um orçamento expressivamente menor do que os dos jogos de Londres e de Pequim. Pois se a ideia de futuro parece posta em dúvida num país em crise econômica e social, sob um governo ilegítimo e usurpador, brilhou na festa a potência artística de um Brasil que, sob esse amargo ponto de vista atual, parece emanar do passado, como miragem de um país que um dia vislumbrou uma modernidade singular: leve, generosa e socializável. Modernidade que, diante dos olhos incrédulos do mundo, alçou voo em uma cópia do 14-Bis, que deixou o Maracanã sob o som do "Samba do avião" de Tom Jobim, lançando-se sobre a noite da "cidade maravilhosa".

    Mas não devemos ficar travados na oposição dual entre futuro e passado. O que a cerimônia mostrou, a meu ver, foi a potência de um Brasil virtual que se atualiza de repente diante de nós, como um estado de exceção às avessas, em que o verdadeiro espetáculo é o ser humano, com a nobreza popular de pessoas como Paulinho da Viola e Vanderlei Cordeiro de Lima, o homem que acendeu a pira olímpica.

    Está aqui a atualidade da questão. É a força da cultura que, no atual momento, através dos diversos movimentos de ocupação, define a grande arena de resistência ao eclipse democrático no Brasil, tornando-se o maior inimigo do governo Temer. Pelo front político da cultura, há um país latente que ainda pulsa.

    guilherme wisnik

    Escreveu até janeiro de 2017

    É professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP e crítico de arte.

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