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    Guilherme Wisnik

    'Pokémon Go' leva jogador à cidade, mas não o faz conhecê-la

    19/09/2016 02h00

    Como interpretar o sentido social do "Pokémon Go"? Será um avanço histórico entre os videogames, já que tira os usuários de obscuros quartos de televisão e os leva aos espaços abertos da cidade, próximos ao convívio com outras pessoas? Ou representará, ao contrário, uma forma evoluída de alienação, trazendo hordas de pessoas "zumbizadas" para as ruas, hipnotizadas por um universo que não existe?

    Há muito tempo que ouço profecias sobre como a generalização da internet iria acabar com o espaço urbano. Boa parte dos ensaios críticos, nos anos 1990, apostava na ideia de que as novas comunicações virtuais, somadas ao nascente sistema de entregas delivery de produtos, matariam os espaços públicos. Pois bem, o que vemos hoje é que nada disso aconteceu. Seja porque a interpretação estava errada, seja porque a portabilidade permitiu que a internet ativasse os usos do espaço urbano, ao invés de substituí-los.

    É nesse contexto que se insere, hoje, o "Pokémon Go", um jogo de realidade aumentada em que esses pequenos seres surgem virtualmente no mundo real, tanto dentro das casas quanto em calçadas, ruas e, sobretudo, avenidas, praças e parques. Sendo que as bolas, instrumento necessário para capturar os pokémons, são encontradas em inúmeros pontos espalhados pela cidade, preferencialmente monumentos.

    Mas o que determina a escolha desses pontos, e como isso é feito, na impressionante escala de todo o território do mundo? Há interesses econômicos nisso, privilegiando, por exemplo, alguns estabelecimentos comerciais? Claramente, há maiores concentrações de depósitos de bolas, assim como de pokémons, em áreas mais centrais e ricas das cidades, o que nos leva a uma associação evidente entre a lógica espacial do jogo e o consumo.

    O fenômeno Pokémon Go tem provocado uma série de situações desconcertantes no cotidiano das cidades, com a invasão ruidosa de jovens caçadores em cemitérios, hospitais ou lugares de culto. Mas, diferentemente de práticas conscientemente críticas aos usos tradicionais da cidade, baseadas também em experiências de derivas, o impulso de quem sai à cidade em busca de pokémons não é o de inventar novos cotidianos nem de potencializar a imaginação como forma de desprogramação da vida sob o capitalismo.

    Quando, alguns anos atrás, assisti na televisão a um episódio do desenho animado "Pokémon", estranhei a passividade do seu discurso. Pois os meninos –com quem deveríamos nos identificar na história– não lutam entre si, e sim comandam bichinhos que batalham através de suas instruções verbais. Eles são heróis inativos, que teleguiam suas ações para dispositivos fora deles.

    Posso estar errado, mas é também essa a sensação que tenho com o "Pokémon Go". Pois a atração que leva os seus jogadores para a cidade é justamente, por mais paradoxal que seja, o ímpeto que os faz não conhecê-la, aprisionando bichinhos em bolas vermelhas da mesma forma que turistas acumulam inutilmente imagens em suas câmeras fotográficas.

    Conta-se que há ladrões de tocaia perto de alguns "pokéstops" mais ermos, roubando celulares a rodo de "zumbis" desatentos. Há aqui, apesar de tudo, um aspecto construtivo. Pois nada melhor do que a fricção com a realidade para nos acordar do mundo de Matrix.

    guilherme wisnik

    Escreveu até janeiro de 2017

    É professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP e crítico de arte.

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