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    Guilherme Wisnik

    El Alto se tornou centro de resistência às políticas urbanas neoliberais

    17/10/2016 02h00

    Juan Karita-17.mai.2014/Associated Press
    Mulher dança em salão de festa na cidade El Alto
    Mulher dança em salão de festa na cidade El Alto

    Há alguns meses estive na Bolívia, a convite do fotógrafo Tatewaki Nio, que faz um trabalho sobre a "arquitetura neoandina" de Freddy Mamani. Trata-se de um fenômeno cultural do mais alto interesse: a emergência de construções estridentemente coloridas, com espelhos e motivos ornamentais feitos em gesso, conhecidos como "cholets", isto é, os chalés dos "cholos" (camponeses indígenas que vieram para a cidade).

    São grandes salões de eventos, alugados para festas, coroados com a casa do dono do imóvel no topo, com telhado inclinado, em forma de chalé. Me interessei desde o início pelo fenômeno, atraído pelas impressionantes fotos de Nio, que mostram o contraste aberrante entre essa arquitetura kitsch e exibicionista e a paisagem do entorno: ruas de terra e construções precárias de blocos de tijolo, com o desagradável aspecto de obras não terminadas. Mas o que haveria ali de tão especial para além desse contraste sedutor?

    Os edifícios de Freddy se localizam em El Alto, cidade nova ao lado (ou acima) de La Paz, e que nasceu como um subúrbio daquela, na área plana, e alta, onde foi instalado o aeroporto. Precário desde a origem, o assentamento urbano cresceu de forma desordenada e totalmente autoconstruída, pelas pessoas pobres –"cholos", de etnia Aymara– que foram lá se instalando, e vivendo do comércio informal que liga o altiplano (e, com ele, o Pacífico e o oriente) às áreas mais baixas e ricas da Bolívia, que chegam a Santa Cruz de la Sierra e ao Brasil. Muitos desses habitantes de El Alto são ex-mineiros que perderam o trabalho com a onda de privatizações e o fechamento das minas nos anos 80 e 90. E, por isso, trouxeram com eles uma forte consciência política, baseada em uma profunda tradição sindical. Forma-se, aí, um novo fenômeno urbano de alto interesse.

    Com a economia globalizada das últimas décadas, houve um deslocamento econômico dos setores da produção para os de serviços, favorecendo o surgimento de uma nova burguesia Aymara, que justamente controla o transporte de bens (incluindo a coca) nesse grande "hub" geográfico do continente que é El Alto. É justamente essa nova classe social, que tem livre trânsito comercial com a China e a Índia, que adotou, ao menos em parte, a arquitetura de Freddy Mamani como símbolo de afirmação identitária e de status social. Uma arquitetura que combina motivos locais –certas geometrias ornamentais de Tiwanaku– com uma estética pós-moderna a la Bollywood e Las Vegas.

    Com essa mistura explosiva entre forte organização camponesa, tradição sindical, identidade indígena e capital internacional, El Alto se tornou um importante centro de resistência às políticas urbanas neoliberais, liderando as revoltas da chamada "guerra do gás" em 2003, que levaram à queda do presidente Lozada e à ascensão de Evo Morales, eleito dois anos depois.

    Misto de aldeia rural com grande subúrbio genérico de beira de estrada, El Alto fermenta uma experiência importante para a esquerda latino-americana, e mundial, nos sombrios dias atuais. Com pouco apoio do Estado, a sociedade manteve sua organização comunal, com juntas de vizinhos, e uma forma de fazer política distante das relações tradicionais entre as esferas pública e privada. Trata-se de um ensaio contemporâneo daquilo que alguns autores chamam de a esfera do "comum".

    guilherme wisnik

    Escreveu até janeiro de 2017

    É professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP e crítico de arte.

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