• Colunistas

    Saturday, 04-May-2024 20:58:38 -03
    Guilherme Wisnik

    As novas práticas autogestionárias e colaborativas no espaço urbano

    14/11/2016 02h00

    Participei recentemente do ciclo de conferências Mutações, organizado pelo filósofo Adauto Novaes. Instigado a pensar os processos radicais de mudança de paradigma pelos quais passamos hoje, ensaiei essa reflexão, que condensarei aqui.

    Na obra seminal "A condição Humana", Hannah Arendt propõe uma importante diferenciação entre labor e trabalho. Labor é a atividade que produz bens para serem consumidos, alimentando o corpo e garantindo, portanto, a sobrevivência dos indivíduos e da espécie.

    Já o trabalho constrói a artificialidade da vida, na forma de objetos duráveis que medeiam as nossas relações, tais como utensílios domésticos, edifícios, muros, cidades. Assim, enquanto o animal laborans é, simbolicamente, o camponês agricultor, o homo faber é o artesão, o artista, o operário, o engenheiro, o arquiteto.

    Do ponto de vista da história da civilização, é possível pensar a chamada "revolução urbana", ocorrida há 5.000 anos na Mesopotâmia, como um momento de passagem da vigência do labor para a do trabalho. Isto é, das aldeias neolíticas autossuficientes, comunais e matriarcais para as cidades da Era do Bronze, impérios militares produtores de excedente e de comércio, socialmente estratificados e complexos, e dominados por muralhas, templos e palácios.

    Jota Azevedo
    O trabalho constrói a artificialidade da vida
    O trabalho constrói a artificialidade da vida

    Há, nessa passagem, uma grande conquista civilizacional, através de revoluções técnicas, que rompem o equilíbrio de uma sociedade autossuficiente que se mantinha assim por milênios, levando-a ao colapso.

    Contudo, sem querer negar os avanços contidos aí, Karl Marx vê também, nessa passagem, uma espécie de pecado original da civilização ocidental, em que o comunalismo é rompido em prol de uma divisão da sociedade em classes.

    Mas no que isso tudo nos toca? Escrevendo no final dos anos 1950, em plena emergência da sociedade de consumo, Hannah Arendt enxergava um retorno do labor como valor social predominante, com a ascensão galopante do consumo, que punha (e põe cada vez mais) a perder o mundo da durabilidade longamente erigido pelo homo faber.

    Trata-se, talvez, de figurar aquilo que, alguns anos mais tarde, Marshall McLuhan chamaria de "aldeia global". Articulado ao fato de que, não por acaso, muitos teóricos falam hoje em um mundo da pós-cidade, ou da Necrópolis, onde o imenso espraiamento suburbano dissolveu a noção de cidade como recipiente, explodindo o próprio conceito.

    O diagnóstico, como está claro, é sombrio. Consumo voraz, obsolescência, erosão da durabilidade, sacrificando o mundo do homo faber, que era baseado no ethos da necessidade, e não da abundância. Ocorre que, a meu ver, também é possível pensar essa mutação em uma chave mais construtiva.

    Vejamos os exemplos das fazendas urbanas em Detroit. A cidade do capitalismo industrial, arruinada no mundo pós-industrial, que se esvazia e é reocupada por pessoas que plantam para subsistência, em terrenos muito próximos ao centro de torres corporativas.

    Há hoje, evidentemente, o surgimento de novas práticas autogestionárias e colaborativas, em espaço urbano, que se espelham de alguma forma no comunalismo aldeão, como uma flor que surpreendentemente rompe o asfalto. Práticas que valorizam o processo, mais do que o produto, e que se voltam, por exemplo, à simples produção laboral de alimentos, em vez de commodities. Será que esse não é, de fato, um valor a se resgatar?

    guilherme wisnik

    Escreveu até janeiro de 2017

    É professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP e crítico de arte.

    Edição impressa

    Fale com a Redação - leitor@grupofolha.com.br

    Problemas no aplicativo? - novasplataformas@grupofolha.com.br

    Publicidade

    Folha de S.Paulo 2024