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    Guilherme Boulos

    Receita para acabar com as ocupações

    26/06/2014 00h01

    Nos últimos meses as ocupações organizadas por trabalhadores sem-teto cresceram exponencialmente em São Paulo e em outras grandes metrópoles do país. Somente na capital paulista foram mais de cem no último ano. Rio de Janeiro e Belo Horizonte registraram também grandes ocupações urbanas. Os alvos são sempre terrenos ou edifícios que estavam há tempos em situação de abandono.

    O crescimento das ocupações suscitou um debate sobre o problema da moradia no país e permitiu que movimentos como o MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem Teto), que trava há 17 anos a luta por moradia digna e Reforma Urbana, tivessem enfim espaço para expor suas posições.

    Mas gerou também uma reação dos conservadores de sempre. Políticos, empreiteiros, editorialistas e promotores de Justiça se uniram apressadamente para julgar e sumariamente condenar as ocupações urbanas.

    Políticos prenunciam o caos e a desordem. Seus financiadores, os empreiteiros, gritam pelo direito à propriedade, esquecendo-se talvez de que a mesma Constituição que o garante exige também que ela desempenhe função social. Os jornais cobram a mão forte do Estado contra os "invasores". E até o Ministério Público resolveu abrir inquéritos sobre tema.

    O circo foi montado. Todos querendo acabar com as ocupações urbanas. Resolvemos então dar nossa contribuição a esse objetivo comum. Mas é preciso fazê-lo de uma forma mais qualificada e crítica. Se querem acabar com as ocupações, basta entender por que elas ocorrem e combater efetivamente suas causas. Compreender portanto as mudanças que afetaram as grandes cidades brasileiras nos últimos dez anos.

    Com a aceleração econômica e a maior facilidade de crédito, o setor imobiliário teve um crescimento inédito na história recente. A indústria da construção se tornou a locomotiva nacional. O número de moradias financiadas pelo SFH (Sistema Financeiro de Habitação) passou de 247 mil em 2003 para 522 mil em 2006. O mercado imobiliário se aqueceu, complementado ainda com a abertura de capital das grandes empresas do ramo na Bovespa, que lhes rendeu bilhões de reais, investidos em aquisição de novas terras.

    O resultado é conhecido de todos. Os preços dos imóveis explodiram nas grandes cidades, inclusive em regiões que antes não eram alvo dos investimentos privados. Bairros inteiros se transformaram com os novos investimentos, escancarando com isso a dupla face do crescimento econômico.

    De um lado, o crescimento gerou empregos e permitiu a milhões de pessoas o acesso a produtos que antes não tinham, representando um avanço em relação ao pão e água do neoliberalismo tucano. Mas, por outro lado, agravou a lógica de exclusão urbana ao tornar inviável a permanência dos mais pobres em regiões capturadas pelo mercado imobiliário.

    A valorização imobiliária é traiçoeira. À primeira vista pode parecer benéfico que cheguem investimentos privados e novos empreendimentos que valorizem um bairro. Mas, assim que eles chegam, os preços explodem.

    Em especial o preço do aluguel, que ainda é a forma de moradia de milhões de trabalhadores brasileiros. E na medida em que o aluguel aumenta –e aumentou muito nesses anos– sufoca o orçamento das famílias mais pobres.

    Muitos não conseguem mais morar onde sempre moraram. São expulsos por essa lógica para regiões mais distantes e periféricas. E isso implica uma piora geral nas condições de vida: mais tempo no transporte para ir e voltar do trabalho, serviços públicos ainda piores e menor infraestrutura urbana.

    Os dados mais recentes atestam essa explosão dos aluguéis nas metrópoles. Segundo a Fundação João Pinheiro, responsável pela organização e divulgação das pesquisas oficiais sobre o deficit habitacional, entre 2007 e 2012 o número de pessoas que sofrem com gasto excessivo com aluguel subiu 35,3%, chegando a 2.660.000 famílias. Apenas em um ano, entre 2011 e 2012, o deficit habitacional nas metrópoles brasileiras subiu 10% alçado pelo aumento dos aluguéis. Lideraram Belo Horizonte (29%), Curitiba (26%) e São Paulo (18%).

    Diante disso não é difícil concluir por que as ocupações aumentaram tanto nesses anos. Ocupar não é resultado da opção de alguém, mas da falta de opções. Ninguém vai viver em um barraco de lona porque gosta.

    Se querem então acabar com as ocupações, que encarem de frente suas verdadeiras razões. Ao invés de defender a criminalização dos movimentos e dos acampamentos de trabalhadores sem-teto, defendam uma Reforma Urbana profunda, que possa resolver o drama da moradia nas cidades brasileiras. As ocupações acabarão sem a necessidade de uma só bomba de gás.

    A receita é política. Combater a especulação imobiliária com regulação de mercado, tirar o controle da política urbana das mãos das grandes empreiteiras e desenvolver uma estratégia de desapropriação de terras que recupere a capacidade do poder público de planejar a política habitacional. Esses são importantes passos para quem quiser de fato acabar com as ocupações urbanas no Brasil.

    Será que estão todos dispostos a defendê-los?

    Formado em filosofia pela USP, é membro da coordenação nacional do MTST e da Frente de Resistência Urbana.

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