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    Guilherme Boulos

    Menos 612

    14/08/2014 03h00

    "Menos dois", foi este o comentário de um policial militar do Rio de Janeiro ao seu colega após terem executado dois garotos, M. de 15 anos e Matheus Alves dos Santos, de 14, no dia 11 de junho deste ano. Na verdade, M. sobreviveu mesmo com um tiro de fuzil e por isso a história chegou ao conhecimento público. Os garotos, negros e moradores da favela da Maré, caminhavam pelo centro do Rio quando foram abordados e levados pelos PMs ao morro do Sumaré, local da execução.

    Menos dois que nada! Menos 612, só no primeiro semestre deste ano. Esse é o número de pessoas assassinadas por policiais militares em serviço no Rio de Janeiro e São Paulo, de janeiro a junho de 2014. Longe de ser uma prática isolada de alguns psicopatas fardados, o extermínio policial é rotina no Brasil.

    No Rio de Janeiro, que tem a polícia mais letal do país, foram 10.700 assassinatos praticados por policiais em uma década, de 2001 a 2011. Contando apenas os registros de morte decorrente de intervenção policial, isto é, os assumidos pelos policiais. Nos primeiros seis meses deste ano foram 295 homicídios nessa categoria.

    Mas o número real tende a ser bem maior. Não fosse o fato raro do garoto M. ter sobrevivido ao tiro de fuzil, Matheus entraria na estatística como "desaparecido", e não como morte causada pela PM. Também no primeiro semestre deste ano, foram 3.185 desaparecidos no Estado do Rio de Janeiro, segundo o Instituto de Segurança Pública (ISP/RJ). Ou seja, os números –já em si alarmantes– podem estar ainda bastante subestimados.

    Em São Paulo a realidade não é tão diferente. A letalidade policial é relativamente menor que a do Rio, mas é crescente. Este ano o crescimento dos homicídios praticados por policiais no Estado foi manchete em toda a parte. De janeiro a junho foram 317 assassinatos por policiais em serviço, um aumento de 111% em relação ao primeiro semestre de 2013. 111%, mais que o dobro! Isso representa cinco homicídios a cada dois dias.

    Só no último mês foram dois casos que ganharam uma maior repercussão. As chacinas de Carapicuíba, em 13 e 26 de julho, que deixaram doze mortos –incluindo uma mulher grávida– na vingança de policiais após o assassinato de um PM na cidade. E os dois jovens executados em 31 de julho após serem pegos por policiais pichando um edifício abandonado na zona leste da capital.

    "Mas estavam pichando, eram bandidos!" –retrucaria o espírito conservador paulistano, tão bem dissecado em artigo recente de Antonio Prata. Pois é, não consta que para pichação ou qualquer outro crime esteja definida no Código Penal brasileiro a pena de morte. Aliás, pena de morte executada covardemente, sem direito de defesa, julgamento ou condenação legal.

    Na prática a pena de morte existe no Brasil. Aliás, dados da Anistia Internacional atestam que apenas as polícias de São Paulo e Rio de Janeiro mataram 42% mais gente do que todos os países onde existe legalmente pena de morte. As polícias dos Estados Unidos, país tão apreciado pelos de espírito conservador, mata entre 200 e 400 pessoas por ano, considerando-se uma população total de mais de 300 milhões de pessoas. Já a polícia de São Paulo, Estado que tem pouco mais de um décimo desta população, matou 317 só no primeiro semestre deste ano.

    Mas esta pena de morte extrajudicial é seletiva. Seus alvos são muito bem definidos. Têm cor, idade e endereço. São quase sempre jovens e negros. E são sempre pobres e moradores das periferias. O mapa organizado pelo site ponte.org não deixa dúvidas sobre isso.

    E é precisamente por isso que a pena de morte brasileira é tolerada e mesmo encorajada por um setor da sociedade. É vista pelo imaginário fascista de uma parte das camadas médias e da burguesia brasileira como uma necessária limpeza social. Afinal, bandido bom é bandido morto. Direitos humanos é para humanos direitos. Ou seja, não foi o cabo da PM carioca que inventou o "menos dois".

    Ele apenas expressou, com um sadismo nu e cru, o culto à barbárie e ao extermínio dos mais pobres que é defendido por gente muito mais graúda que ele, nas rodas sociais, na mídia e nos governos.

    Quando o governador Geraldo Alckmin diz que "quem não reagiu está vivo" em meio à onda de chacinas cometidas por policiais em 2012 em São Paulo, qual a mensagem que ele envia para a tropa? Quando consideramos que mais de 90% dos homicídios praticados por policiais no Rio de Janeiro têm sua investigação arquivada em menos de três anos pelo Judiciário, sem qualquer punição, o que os juízes e promotores estão dizendo para esses PMs?

    Matar negros e pobres nas periferias é permitido, esta é a mensagem. Uma verdadeira chancela oficial. Não à toa que os números crescem.

    Enquanto a estrutura da segurança pública não for desmilitarizada –proposta que está estacionada no Congresso Nacional, a PEC 51- e enquanto os governos e o judiciário continuarem tolerando e estimulando o extermínio policial nas periferias, esta tendência não se inverterá.

    Continuaremos a presenciar diariamente a matança de novos Amarildos, Claudias, Douglas, Matheus e tantos outros sem nome que tiveram a vida ceifada pela covardia injustificável de uma execução em nome da ordem.

    Formado em filosofia pela USP, é membro da coordenação nacional do MTST e da Frente de Resistência Urbana.

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