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    Guilherme Boulos

    Cesare Battisti e o homo sacer

    05/03/2015 02h00

    "Homo sacer" é uma figura da antiga lei romana que execrava um cidadão, retirando todos seus direitos civis. Aquele que fosse decretado como homo sacer não estaria mais ao abrigo de qualquer proteção legal e poderia ser morto impunemente. Era inclusive vetado a ele os sacrifícios rituais.

    O filósofo Giorgio Agamben retomou esta figura para tratar de um regime de anomia, onde o estado de exceção torna-se regra. O conceito foi utilizado para pensar ainda casos como o da prisão norte-americana de Guantánamo, onde os sujeitos estão num limbo jurídico, fora de qualquer lei definida.

    Para o homo sacer a lei está em função do poder, em estado de indefinição, podendo pender arbitrariamente para qual lado for.

    Se pensarmos bem veremos que este conceito não nos é estranho. O massacre continuado da juventude negra e pobre nas periferias urbanas –executado por policiais, à margem da lei - não deixa de ser uma expressão perversa do homo sacer. Proteção legal e o direito de não ser morto impunemente é só da ponte pra lá.

    Mas na última terça-feira, a juíza da 20 vara federal de Brasília caminhou para inserir este dispositivo à luz do dia no ordenamento jurídico brasileiro.

    A magistrada determinou a deportação do militante e escritor italiano Cesare Battisti, desrespeitando decisão soberana do Presidente da República e do próprio Supremo Tribunal Federal.

    Cesare foi preso na Itália em 1979 sob as acusações de "participação em atividade subversiva", documento falso e porte de armas. Foi condenado em 1981 a treze anos de prisão, num processo judicial repleto de irregularidades. Posteriormente foi agregado ainda à sua pena o crime de homicídio, com base em duvidosas confissões de ex-militantes.

    Preso político, ele conseguiu escapar refugiando-se na França e posteriormente no México, sempre à mercê das flutuações ideológicas de cada país. Vem ao Brasil, onde foi preso em 2007.

    No fim de 2010, o presidente Lula nega a extradição de Cesare para a Itália por conta do notório risco de vida que teria neste país. A decisão foi confirmada pelo Supremo Tribunal Federal, a instância máxima do judiciário brasileiro.

    Mesmo assim Cesare permaneceu preso até meados de 2011 e só obteve seu visto de permanência no ano passado, podendo então ter legalizada sua situação no Brasil pelo registro nacional de estrangeiros.

    Fim da novela? Seria, não fosse Cesare Battisti tratado como homo sacer, sem direitos constituídos e tendo seu destino arbitrariamente definido por qualquer promotor ou juiz de primeira instância. O abuso é inacreditável.

    A tentativa de legitimar a decisão diferenciando a extradição de deportação é de um casuísmo flagrante. Na prática, a decisão busca reverter os desdobramentos de um processo encerrado e julgado pela corte suprema do país.

    Onde estão agora os fervorosos defensores do Estado de Direito para denunciar as ilegalidades contra Cesare Battisti?

    Aguardamos ansiosamente o ministro Gilmar Mendes se insurgir contra a juíza do caso em defesa da autonomia do STF. Foi o que ele fez contra o juiz Fausto de Sanctis em 2008 para defender a liberdade do banqueiro Daniel Dantas.

    Dois pesos, duas medidas?

    Essas são as questões que estarão postas ao Supremos Tribunal Federal no julgamento da prorrogação indevida do caso Cesare Battisti.

    Formado em filosofia pela USP, é membro da coordenação nacional do MTST e da Frente de Resistência Urbana.

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