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    Guilherme Boulos

    Sobre o 15 de março

    19/03/2015 18h19

    Convocadas pela mídia, capitaneadas por obscuros grupelhos de direita, multidões foram às ruas do país em 15 de março. O que se viu foram níveis recordes da Escala F, criada por Theodor Adorno para medir as tendências fascistas que emergem nas democracias liberais.

    Pais de família fazendo ofensas misóginas à presidenta da República. Um torturador da ditadura aclamado no carro de som ao discursar que "conhece essa gente e só não metralhou a todos porque faltou oportunidade". Ataques físicos a setores da imprensa e tentativas de espancamento a quem vestisse vermelho ou destoasse do consenso coletivo.

    Um discurso anticomunista tal qual o da Marcha da Família com Deus pela Liberdade, que preparou o golpe de Estado de 1964. Aliás, não faltou quem defendesse a intervenção militar como saída para o país. Longe de ser algo isolado –como quis fazer crer a grande mídia–, os golpistas estavam totalmente à vontade e de acordo com o clima dos atos. A PM foi exaltada. A tropa de choque, em São Paulo, ganhou flores e selfies.

    Respondeu a gentileza à altura. Estimou em 1 milhão de participantes a mobilização, que o Datafolha mostrou ter pouco mais de 200 mil. Curioso que se trata da mesma PM de notória avareza nos números quando quem está nas ruas são movimentos populares organizados.

    De todo modo, é inegável que as mobilizações foram expressivas numericamente. Quem deu corpo a elas em todo o país foi a classe média urbana, que se divorciou do PT após 2005. Este divórcio foi analisado brilhantemente por André Singer, em seus estudos sobre a base social do lulismo. E cada vez mais, como costuma ocorrer nas separações ressentidas, o divórcio transforma-se em ódio. Ódio cego e voraz.

    Baseados neste ódio, a direita e a mídia brasileiras adotaram no 15 de março o modelo venezuelano de oposição, apesar de não termos aqui um governo de esquerda como na Venezuela. As principais redes de televisão convocaram a mobilização com grande antecedência e fizeram uma cobertura digna de Copa do Mundo.

    A mídia inflou e defendeu o civismo da luta contra a corrupção. Ela mesma que tem alguns de seus grandes representantes sendo investigados no esquema de sonegação e evasão de divisas do caso HSBC. Coerência não é o seu forte.

    O mesmo se dá com a direita. Aécio Neves foi a público para defender a cassação de registro dos partidos envolvidos em corrupção, buscando atacar o PT. Se sua proposta vigorasse, não poderia ter sido candidato à Presidência, dada a lista de escândalos envolvendo o seu partido e a ele próprio. Aliás, ver Agripino Maia, José Aníbal e Aloysio Nunes em um ato contra a corrupção é assunto para humoristas.

    No entanto, mesmo tendo claro o oportunismo da mídia, o assanhamento da direita e a histeria protofascista dos atos, o dia 15 não se resumiu a isso.

    Felizmente, nem todos os que foram às ruas são de direita. Sem falar nos muitos que não foram às ruas, mas apoiaram as manifestações.

    O dia 15 representou o esforço da direita –com pesado suporte midiático– em surfar na onda da insatisfação popular. A indignação com a corrupção e principalmente com a deterioração das condições econômicas está longe de ser pauta de direita. Aliás, ao longo da história foram quase sempre pautas da esquerda.

    Neste mesmo sentido, o dia 15 também demonstrou a incapacidade da direita em oferecer respostas concretas para esta insatisfação. Contra corrupção: Fora, PT! Contra o aumento de tarifas: Fora, PT! Por saúde e educação: Fora, PT!

    É de um infantilismo gritante, que revela a falta de projeto político da direita brasileira. Ou melhor, seu projeto real não pode ser expresso à luz do dia, por ser ainda mais antipopular do que o que vem sendo aplicado no país. Por isso só lhe resta tentar canalizar a insatisfação social e o ódio da classe média em palavras de ordem vazias.

    Mas, como o quadro é grave e o apoio popular ao governo derrete a cada dia, pode até ter êxito em seus objetivos, seja com golpe paraguaio ou, mais provável, com a tática da sangria progressiva.

    O governo petista, atônito e imobilizado, mantém a mesma rota. Firme na crença de que a tempestade é passageira e, após a provação, virá a calmaria. Se seguir sem iniciativa e subestimando sua deterioração pode não estar lá para ver. Precisa entender que o recuo nas medidas impopulares tornou-se questão de sobrevivência.

    O ajuste fiscal e o aumento de tarifas são a onda na qual a direita golpista surfa. São as condições que garantem um apoio popular difuso às manifestações como a do dia 15.

    Aprofundar o ajuste para manter o apoio –ainda assim duvidoso– da burguesia financeira em meio à crise é uma política errática. Pode manter a governabilidade na banca, mas destruí-la nas ruas.

    O momento exige iniciativa decidida. Hesitar em combater o golpismo é um crime político que poderá custar caro. Hesitar em fazer recuar o ajuste fiscal é uma cegueira em relação às razões maiores da insatisfação popular.

    O governo hesita. Caberá aos movimentos sociais apontar o caminho.

    Formado em filosofia pela USP, é membro da coordenação nacional do MTST e da Frente de Resistência Urbana.

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