• Colunistas

    Tuesday, 07-May-2024 16:07:08 -03
    Guilherme Boulos

    Mar da morte

    13/05/2015 02h00

    No último dia 19 de abril, o naufrágio de um barco pesqueiro em águas líbias matou 800 pessoas que tentavam atravessar o mar Mediterrâneo. Pouco antes, cerca de 450 pessoas morreram em casos semelhantes. O drama dos imigrantes refugiados de países africanos para a costa europeia já é uma das maiores tragédias humanitárias do século 21.

    Fugindo da miséria e de guerras civis que envolvem a atuação do Estado Islâmico ou do Boko Haram, verdadeiras multidões saídas de países como Gana, Níger, Somália, Mali, Gâmbia, Senegal, Nigéria, Eritreia e Síria aportam ou tentam aportar no velho continente por meio de lanchas e barcos improvisados - invariavelmente precários - em busca de nada menos que a sobrevivência.

    Os números são impressionantes. Nos primeiros três meses deste ano, o Acnur (Alto Comissariado da ONU para Refugiados) estima que 31.500 pessoas cruzaram o Mediterrâneo para chegar à Itália ou à Grécia, vindos especialmente de portos clandestinos na Líbia. No ano passado 219 mil pessoas conseguiram cumprir o trajeto, número quase quatro vezes maior que o de 2013, quando 60 mil pessoas chegaram até portos europeus.

    A OIM (Organização Internacional para Migrações) registrou até agora quase 2 mil mortes em 2015. Durante todo o ano de 2014 foram 3,4 mil mortes de imigrantes, número que deve ser superado em algumas semanas, podendo alcançar os 30 mil até o final do ano.

    Os poucos centros de atendimento aos refugiados na Itália e na Grécia estão superlotados e não podem receber mais ninguém, o que aumenta o descaso e as políticas anti-imigração na União Europeia. Os xenófobos de sempre aproveitam a ocasião: "A Suíça não tem que carregar sozinha o peso da miséria do mundo", escreveu o jornalista Pascal Décaillet sobre os imigrantes que chegam no país.

    A operação "Triton", levada a cabo pela UE desde o fim de 2014 em substituição ao "Mare Nostrum", visa ao combate à imigração com medidas como a destruição das embarcações utilizadas para transportar imigrantes. Com isso, pretendem desestimular a imigração, ignorando que o desespero tende a produzir formas de travessia ainda mais precárias que as existentes. Medidas como estas só aumentarão os casos fatais.

    Nesta semana, a UE deixou de lado as meias palavras e anunciou sua política beligerante para o caso dos imigrantes ilegais. O plano - elaborado pelo Reino Unido —é empreender ataques militares na Líbia para supostamente desbaratar as redes ilegais de transporte. Ao problema social dos refugiados, a resposta da UE vem sob a forma de bombardeios.

    Por outro lado, setores da imprensa europeia tentam demover a xenofobia da UE, para quem patrulhar fronteiras é mais importante que salvar vidas, com a ideia de que a imigração é uma das formas de resolver problemas de custos no mercado de trabalho. Ou seja, trata-se de utilizar refugiados como forma de rebaixar salários e direitos trabalhistas: "imigração é uma fonte essencial de oportunidades para garantir a recuperação da crise e a preservação da preponderância europeia na cena mundial" afirma o editorial do "El País" de outubro de 2014.

    Uns defendem que deixe morrer, outros a escravização. Vai mal a velha Europa.

    Os governos e imprensa europeus comportam-se com a arrogância colonialista de sempre. Se a tragédia não é lá, que o inferno seja dos outros e se a crise ainda é uma ameaça, por que não utilizar mão de obra barata dos imigrantes?

    Ilustrativo é que a mesma Europa que parou para chorar quando do deplorável assassinato dos cartunistas do Charlie Hebdo não seja capaz de derramar uma lágrima pelos milhares de corpos africanos em suas praias.

    Formado em filosofia pela USP, é membro da coordenação nacional do MTST e da Frente de Resistência Urbana.

    Fale com a Redação - leitor@grupofolha.com.br

    Problemas no aplicativo? - novasplataformas@grupofolha.com.br

    Publicidade

    Folha de S.Paulo 2024