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    Guilherme Boulos

    Alckmin, dona Fátima e seus dez netos

    14/01/2016 11h25

    Dona Fátima, aos 50 anos, é a "mãe" de seus dez netos. Quando a filha foi presa veio o despejo. Sem trabalho, não podia pagar o aluguel e ficou a esmo, desolada, com a cria toda. Iria pra rua da amargura.

    Guerreira, arrumou umas folhas de madeirite, telha e ergueu um pequeno barraco, onde mal cabiam todos, numa comunidade que então surgia. Eram muitos na situação dela. Cada um fazia o seu como podia.

    Sofreu naquele chão de terra batida. Chegou a pegar do lixo para que as crianças comessem. Foram dias difíceis. Com o tempo, a vida foi se ajeitando e dona Fátima conseguiu um emprego como diarista e quem cuidasse das crianças.

    Mas não passou muito para que seu mundo voltasse a despencar. O emprego ela perdeu, mas ainda tinha a casa e alguma coisa para sustentar os seus. Agora pode perder também a casa.

    Se fosse personagem de ficção, dona Fátima inspiraria compaixão. Mas não, ela e seus netos são reais. Então merecem desprezo e ódio: "quem mandou invadir o que é dos outros?", "vagabunda!". Dona Fátima virou até notícia de jornal, assim como Maria Lucia, seu José e Ricardo, o "professor".

    Todos eles e outras quase 8.000 pessoas, cada uma com a sua história, são moradores da comunidade Vila Soma, em Sumaré (a 118 km de São Paulo), região metropolitana de Campinas (SP). Têm em comum o fato de serem deserdados e, por isso, terem buscado uma guarida para o sol e a chuva na Vila Soma.

    Há quatro anos começaram as primeiras construções. Hoje quase todas as casas são de alvenaria, consolidadas. Ali está a única alternativa de sobrevivência decente de milhares de pessoas como dona Fátima, a esperança de uma vida melhor.

    Mas o juiz, com sua "ordem superior" e sensibilidade de elefante, mandou jogar a todos na rua. Em benefício de uma massa falida, com dívidas milionárias com o próprio poder público. E a Polícia Militar de Geraldo Alckmin (PSDB), com seus "braços de estivador", agendou esta barbárie para o próximo domingo, dia 17.

    Maria Lucia é clara nas palavras: "Nós somos seres humanos e vamos morrer pra lutar pelo nosso direito. Até um animal tem direito a uma moradia. Você pode jogar um cachorro na rua? Nós não temos arma pra enfrentar polícia. Nós vamos enfrentar polícia sabe como? De mãos baixas. Eles vão ter que matar a gente de mão baixa".

    Seu José pensa igual: "Vai ter que tacar fogo em mim. Só saio daqui arrastado". E Ricardo, apelidado de "professor", ensina o que os governantes deveriam saber –que o desespero deixa as pessoas sem saída: "Se eles tivessem pra onde ir, eles já teriam ido, porque sofrer essa pressão psicológica que a gente sofre aqui... Mas se for ter mesmo a reintegração, o confronto vai acontecer. Isso não está descartado porque no Pinheirinho não foi diferente". Dona Fátima estará lá.

    Eles e outras 8.000 pessoas não têm alternativa a não ser resistir. Estão dispostos a morrer. Perder o teto que conseguiram, morar na rua, voltar a catar comida do lixo, isso eles não aceitam. Não seria alternativa, seria humilhação.

    Se alguém duvida, basta ver as imagens da "tropa da resistência". Contra as bombas da PM e seu blindado israelense, o povo da Vila Soma opõe –como os palestinos– paus, pedras e muita coragem.

    A prefeita Cristina Carrara (PSDB) dá de ombros. Sangue é tudo o que ela quer. Boicotou todas as negociações para uma solução pacífica e trabalhou incansavelmente pelo despejo. Ela quer mesmo é garantir seus compromissos com a elite local. E afinal, quem é Cristina Carrara no cenário político? Ela sabe que o passivo não ficará em seu nome.

    Parece um novo Pinheirinho. Cheira um novo Pinheirinho. Tem o tamanho de um novo Pinheirinho. Enfim, será um novo Pinheirinho, tanto pela operação de guerra, quanto pela resistência popular.

    A não ser que o governador Geraldo Alckmin tome uma decisão sensata e cancele a ação policial. Ainda há tempo. E há também respaldo jurídico para tanto, como a decisão do desembargador Marcelo Semer negando o pedido de desocupação. Se optar pela operação de guerra, o governador terá que responder a uma questão: para onde vão dona Fátima e seus dez netos?

    *

    Há poucas horas, o presidente do STF (Supremo Tribunal Federal), ministro Ricardo Lewandowski, determinou a suspensão do despejo da Vila Soma, atendendo ao pedido da Defensoria Pública. Fez-se justiça. Dona Fátima fica, assim como Maria Lucia, seu José, o professor e outras milhares de pessoas. Por ora, nada de despejo. Parabéns aos guerreiros e guerreiras da Vila Soma!

    Formado em filosofia pela USP, é membro da coordenação nacional do MTST e da Frente de Resistência Urbana.

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