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    Hélio Schwartsman

    Negócios da OAB

    30/08/2012 03h00

    A OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) já prestou e ainda presta importantes serviços ao país. Ela foi uma peça-chave na redemocratização e desempenha importante papel na preservação dos direitos humanos, tanto os concretos como os difusos, contribuindo ainda para o aprimoramento do Judiciário. Eu receio, porém, que, devido à perversa combinação de mau desenho institucional com um mercado de trabalho quase saturado, a ordem esteja se convertendo cada vez mais num balcão de negócios.

    A polêmica da vez é a disputa entre a OAB e as Defensorias pelas verbas públicas destinadas à assistência judiciária. Enquanto as Defensorias reclamam, com razão, que a prioridade do Estado deve ser reforçá-las, a Ordem advoga pela aprovação de uma emenda constitucional que lhe daria exclusividade para firmar convênios com as diferentes esferas do governo. Estas, em vez de alocar todos os recursos nas Defensorias, poderiam pedir à OAB advogados dativos, cujos serviços remuneraria.

    Não tenho nada contra profissionais liberais. Dada a imprevisibilidade do mundo (não sabemos quantas pessoas precisarão de auxílio judicial ao mesmo tempo), penso que o uso de dativos de forma complementar é algo útil na organização do sistema. Tenho, porém, horror a exclusividades. Sempre que um grupo ganha o direito de fazer alguma coisa em caráter monopolístico, podemos estar certos de que a sociedade perdeu. Por que não dar aos entes federativos a possibilidade de firmar convênios com a OAB, mas também com universidades, centros acadêmicos e mesmo escritórios de advocacia?

    A verdade, como bem apontaram os defensores públicos André Luís Machado de Castro e Rafael Morais Português de Souza em artigo para a Folha, é que o instituto do dativo se tornou uma espécie de renda mínima para advogados com dificuldades para conseguir clientes num mercado cada vez mais competitivo. A mesma opinião externou o ministro do STF José Antônio Dias Toffoli quando, no curso de recente ação sobre a Defensoria Pública de Santa Catarina, disse que os convênios se prestavam "nem tanto a defender as pessoas hipossuficientes, mas os advogados hipossuficientes".

    Na mesma edição, há um contraponto escrito pelo advogado Ricardo Sayeg.

    Pior mesmo foi ler, no bom texto de Miguel Reale Júnior, Marcos Fuchs e Raissa Gradim sobre a matéria, que, em 2002, a OAB baixou uma resolução que limita bastante a possibilidade de advogados atuarem "pro bono", isto é, gratuitamente. "A profissão de advogado é uma das poucas, se não a única, em que o voluntariado é proibido", observam os autores.

    Essa não é a primeira nem a última das maldades da Ordem. Pelo menos desde 1988, quando se viu com poderes reforçados pela Constituição e por seu prestígio, a OAB vem influindo na confecção das leis de modo a beneficiar seus associados mesmo que à custa da sociedade.

    A menos republicana delas veio em 1994, quando a Ordem fez aprovar a lei nº 8.906, mais conhecida como Estatuto da Advocacia. Ali, logo no artigo 1º carimbou:

    "São atividades privativas de advocacia:
    I - a postulação a qualquer órgão do Poder Judiciário e aos juizados especiais;".
    O que aliviou um pouquinho o problema foi o fato de a Associação dos Magistrados do Brasil ter entrado com uma ação direta de inconstitucionalidade contra o diploma e conseguido com que o STF tirasse a expressão "qualquer". Com isso, deixou de ser obrigatório constituir advogado até para ir aos tribunais de pequenas causas e à Justiça do Trabalho. É melhor do que o original, mas o contrassenso persiste. Não me entendam mal. Acredito no velho ditado segundo o qual o homem que advoga por si próprio tem um tolo por cliente. Quero, entretanto, ter o direito de fazê-lo, ainda que não pretenda exercer tal prerrogativa. O que está em jogo aqui são os próprios pressupostos da República. É absurda a ideia de que eu possa escolher, pelo voto, as principais autoridades do Executivo e os membros do Parlamento, que escreverão e implementarão as leis do país, mas seja considerado incapaz de representar apenas a mim mesmo diante de um juiz. Pior ainda é que isso ocorra por força de pressões escancaradamente corporativistas de uma associação profissional.

    Na mesma linha, o lobby também impediu que cidadãos tivessem o direito de registrar diretamente no cartório separações consensuais que não envolvam filhos menores, dispensando o ex-casal de passar por juízes e por advogados. A parte do Judiciário passou, mas a dos causídicos, não. A OAB conseguiu alterar o projeto de lei de modo que mesmo quando não há litígio é necessário obter a assinatura de um advogado, pelo que ele cobra, em São Paulo, no mínimo R$ 1.505,89 (tabela da OAB-SP). |Dar um desconto pode constituir violação ética.

    O golpe de mestre, contudo, foi o dos honorários de sucumbência. Imaginemos um caso em que a parte vencedora de um processo tenha gastado R$ 2.000 em honorários advocatícios contratuais para receber R$ 10.000. Se ela não for ressarcida da despesa pelo perdedor, obterá apenas 80% do seu direito, o que seria uma flagrante injustiça. Assim, para garantir a integralidade da reparação, o Código de Processo Civil (CPC), em seu artigo 20, estabeleceu: "A sentença condenará o vencido a pagar ao vencedor as despesas que antecipou e os honorários advocatícios".

    O CPC é dos anos 70. Em 94, porém, o Estatuto da Advocacia embaralhou as coisas, estabelecendo que os honorários de sucumbência cabiam ao advogado. O caso foi levado ao STF e, pelos debates, a corte parecia inclinada a declarar a inconstitucionalidade do Estatuto. Aí alguém esperto levantou uma questão processual e o autor da ação, a CNI, foi declarado ilegítimo para apresentá-la. Com isso, o principal da matéria nunca foi julgado. O Supremo acabou se pronunciou apenas pela inconstitucionalidade da transferência no caso de advogados empregados.

    Não tenho nada contra os advogados serem bem remunerados. Eles podem e devem fixar contratualmente os honorários que quiserem. O que me parece absurdo é privarem seus clientes da possibilidade de ser ressarcidos de suas despesas pela parte perdedora. Uma boa analogia é com os médicos. É como se o Conselho da Medicina tivesse aprovado uma lei dizendo que, independente do pagamento combinado entre cliente e profissional, o eventual reembolso pago pelo seguro-saúde fosse de propriedade do médico.

    E, como informam os juízes federais José Jácomo Gimenes e Marcos César Romeira Moraes, também em artigo na Folha, nossos amigos advogados já preparam outras surpresas na reforma do Código de Processo Civil.

    O problema de fundo é a natureza meio ambígua da Ordem. Ela é ou pelo menos deveria ser uma autarquia. Tem múnus público e poderes correspondentes. Só que não deixou de ser uma entidade de classe que defende os interesses da corporação. Não que isso seja ilegítimo, mas ficaria melhor para o sindicato, que também existe. Pior, ao contrário das autarquias mais tradicionais, a OAB não está sujeita a fiscalização do TCU nem a regras da administração pública.

    Os excessos corporativistas, é bom frisá-lo, não são uma exclusividade dos advogados. Coisas parecidas ocorrem com outras autarquias poderosas como os Conselhos de Medicina e os CREAs. Vou um pouco mais longe e arrisco dizer que qualquer grupo profissional que tenha condições tentará obter privilégios. Isso é da natureza humana e vale para advogados, médicos, engenheiros, jornalistas, funcionários públicos e o que mais imaginarmos. A solução, portanto, passa por desenhos institucionais que operem num sistema de freios e contrapesos pelo qual nenhuma entidade ou associação consiga isoladamente reunir muito poder. No Brasil, porém, um pouco pela herança getulista, que se inspirou no fascismo italiano, se imagina que é possível criar uma grande república sindical, onde os diferentes interesses corporativos florescem à sombra do Estado evitando conflitos muito explícitos. O esquema até funciona, mas há um preço a pagar. As categorias mais organizadas prosperam à custa da sociedade.

    hélio schwartsman

    É bacharel em filosofia, publicou 'Pensando Bem...' (Editora Contexto) em 2016.
    Escreve às terças, quartas, sextas, sábados e domingos.

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