• Colunistas

    Friday, 17-May-2024 06:23:39 -03
    Hélio Schwartsman

    Às favas com a autonomia

    21/03/2013 03h00

    É preciso proibir o cigarro e banir dos supermercados e restaurantes produtos que façam mal à saúde. Já que as pessoas não sabem o que é melhor para elas, cabe ao Estado intervir, fazendo o que é certo.

    Essa é versão caricata das ideias da filósofa Sarah Conly, autora de "Against Autonomy: Justifying Coercive Paternalism" (contra a autonomia: justificando o paternalismo coercitivo), lançado nos últimos dias do ano passado. Já comentei esse livro na coluna "Autoritarismo benigno", publicada na edição de domingo da Folha. O texto não rendeu muito ibope, mas, como é um tema importante, que merece uma reflexão mais detida, sem a limitação das 56 linhas da versão impressa, volto a ele.

    Se abandonarmos a caricatura e lermos a obra com atenção, veremos que Conly é muito menos polêmica do que parece e do que quer fazer parecer. É verdade que ela se põe contra o virtual consenso na academia norte-americana (e, num grau um pouco menor, no próprio Ocidente) de que as escolhas das pessoas devem ser respeitadas, mas ela de modo algum chega a propor um Estado absolutista que tome decisões pelos cidadãos. Ao contrário, sugere algumas medidas que ela acredita serem capazes de prevenir esse tipo de situação.

    É fato que ela defende o veto ao cigarro, mas se revela simpática à legalização da maconha. O paradoxo se explica. Para Conly, o prazer proporcionado pelo ato de fumar é principalmente um prazer negativo, isto é, deriva da supressão do desconforto que o fumante experimenta quando se vê privado de sua dose de nicotina. Já o prazer da maconha é, para ela, equiparável ao de um vinho e outras bebidas alcoólicas, que, se utilizadas de forma sábia, tornam a vida mais interessante sem comprometer a saúde do consumidor.

    Não concordo muito, mas deixemos isso de lado por enquanto e examinemos melhor os raciocínios de Conly. Embora ela defenda uma ética consequencialista, como John Stuart Mill (1806-73), pretende refutar as teses libertárias deste autor, notadamente a crítica que ele faz ao paternalismo. Para Mill, no que diz respeito a seu próprio corpo e mente, o indivíduo pode fazer o que bem entender. Qualquer intervenção do Estado no curso de ação de uma pessoa só é legítima se for para impedir que terceiros sejam prejudicados.

    O argumento principal de Conly é o de que toda a filosofia libertária de Mill repousa no pressuposto de que os seres humanos (pelo menos os adultos não loucos) são agentes racionais, que fazem sempre (ou pelo menos quase sempre) as escolhas que mais os beneficiam. Só que, ao longo das últimas duas ou três décadas, psicólogos e economistas comportamentais juntaram uma coleção de evidências que provam, para além de qualquer dúvida razoável, que as pessoas são "intratavelmente irracionais". Pior, os erros e as falhas determinados por nossos vieses cognitivos não podem ser consertados por campanhas educativas nem pela introspecção.

    O problema não está tanto em que não sejamos capazes de saber o que queremos. A maioria de nós não tem dúvida em relação a grandes objetivos mais ou menos universais, como manter a saúde, guardar dinheiro para a aposentadoria etc. A questão é que os vieses cognitivos são especialmente eficazes em solapar nossas estratégias para chegar a esses fins. Por mais que tentemos evitar, nossos cérebros valorizam muito mais o presente do que o futuro e reputam qualquer perda como duas vezes pior do que um ganho no mesmo valor. É só para garantir que alcancemos nossas metas mais elevadas, diz Conly, que o paternalismo deve entrar para dar uma mãozinha.

    Há aqui uma distinção importante que salva Conly de tornar-se um Stalin de saias. Ela não está afirmando que o Estado deve decidir o que é melhor para as pessoas, mas sim que o Estado deve facilitar as coisas para que as pessoas cumpram os objetivos que elas próprias elegeram, mesmo que isso signifique ir contra desejos secundários que surjam no meio do caminho. Tenho dúvidas quanto à exequibilidade de tal projeto, mas o fato de Conly diferenciar essas coisas já evita que ela se converta numa pregadora evangélica.

    Na verdade, ela afirma com todas as letras que a ideia de criar uma sociedade na qual cada indivíduo atinja a perfeição moral, que animou e ainda anima tantas legislações, é uma tremenda de uma canoa furada. O exemplo mais gritante é a Lei Seca que vigorou nos anos 20 e 30 nos EUA e só fez aumentar o poder dos gangsters, sem reduzir drasticamente os problemas relacionados ao abuso do álcool.

    Para Conly, o paternalismo coercitivo só se justifica se obedecer a quatro critérios:

    1) A atividade a ser banida precisa estar em clara contradição com nossos objetivos de longo prazo;
    2) As medidas precisam ser efetivas, isto é, não podemos estar diante de uma nova Lei Seca (curiosamente, ela não explica por que o banimento do cigarro não seria um caso desses);
    3) Os benefícios precisam ser maiores do que os custos, tanto materiais como psicológicos, de modo que uma medida que melhore muito a saúde das pessoas deve ainda assim ser vetada se produzir muito sofrimento;
    4) A medida em consideração precisa ser o melhor meio de obter o fim desejado.

    As ideias da autora talvez fiquem mais claras se recorrermos a exemplos concretos. Existe toda uma família de decisões paternalistas coercitivas que o Estado toma por nós sem que ninguém reclame. Elas incluem a proibição de produtos carcinogênicos em alimentos, itens de segurança obrigatórios em veículos. Um libertário obstinado, entretanto, poderia (e deveria) queixar-se dessa interferência que o priva do direito de comprar um carro mais barato, ainda que sem "air bag", um produto que ele não pretende mesmo usar. Difícil discordar de que isso configure um caso de venda casada, prática proscrita pelo Código do Consumidor.

    Um pouco mais polêmicas, mas ainda relativamente bem aceitas estão as normas que obrigam motociclistas a utilizar o capacete e motoristas a afivelar o cinto de segurança. Outro exemplo pouco contestado é a necessidade de apresentar prescrição médica para a compra de certos remédios.

    Como diz Conly, já que aceitamos o paternalismo coercitivo em tantas esferas, por que não sair do armário e assumir de vez que a prática é necessária e contribuiria para nos tornar mais felizes?

    A pergunta é boa. Pessoalmente, acho que Conly menospreza o problema da informação incompleta que, em alguma medida, afeta todas as éticas consequencialistas. Nós simplesmente não temos como calcular o valor subjetivo que o fumante atribui a suas baforadas para proclamar que elas valem menos que a sua saúde. Pelo menos para os tabagistas mais militantes, o banimento do fumo configura uma violação ao terceiro critério proposto pela autora.

    Esse tipo de problema se multiplica por todas as esferas. Não consigo imaginar ninguém que tenha uma tara por gorduras trans ou por corantes carcinógenos, mas posso perfeitamente imaginar um motociclista que preze de tal forma sentir o vento na cara que faça questão de não usar o capacete ou o sujeito que dê tanto valor ao aqui e agora (e tem antecedentes tão extremos de doença cardíaca na família) que prefira não poupar para a aposentadoria.

    Tais imperfeições, inerentes a qualquer modelo consequencialista, fazem com que eu prefira o paternalismo libertário, proposto por Richard Thaler e Cass Sunstein, ao coercitivo de Conly. Já tive a oportunidade de discutir aqui as ideias de Thaler e Sunstein apresentadas em "Nudge: O Empurrão para a Escolha Certa". Ao contrário da filósofa, eles creem que o Estado pode e deve induzir o cidadão a optar pelo que se afigura como a melhor decisão, sem, contudo, obrigá-lo a isso. É preciso, dizem eles, sempre deixar uma porta de saída, para que situações particulares possam receber soluções particulares.

    Assim, é legítimo que a cantina da escola esconda salgadinhos e outras comidas pouco saudáveis atrás do balcão e exponha apenas frutas e alimentos de alta qualidade nutricional. Boa parte das crianças, dizem os autores, irá para as frutas, mas a liberdade de comer "junk food" estará preservada.

    De modo análogo, poderíamos deixar que motociclistas dirigissem com a cabeça exposta sem risco de ser multados, desde que fossem ao órgão de trânsito para demonstrar que contrataram um seguro que cobre esse tipo de acidente e assinassem formulários isentando terceiros de responsabilidade por sua eventual morte. Se as pesquisas que apontam a tendência do ser humano de permanecer no "statu quo" estão bem calibradas, a esmagadora maioria dos condutores dificilmente se daria ao trabalho de correr atrás disso. É possível que parte dos que tentassem até desistissem ao ler os termos de responsabilidade. No atacado, seria como se tivéssemos a lei do capacete, mas sem a coerção da medida.

    Evidentemente, a porta de saída torna a lei menos eficaz. Mas tendem a escapar aos rigores da regra justamente aquelas pessoas que dão mais valor ao ato que se pretende proibir ou controlar. Tanto o critério 3 de Conly como a filosofia geral do consequencialismo foram respeitados.

    O livro de Conly é bom e nos faz ver as muitas contradições de nosso sistema de regulação, que, no fundo, refletem as contradições de nossas tergiversações éticas, mas não creio que ela tenha conseguido desbancar Mill, que, em "On Liberty", escreveu: "Na parte que concerne apenas a ele mesmo [o indivíduo], à sua independência, o direito é absoluto. Sobre si mesmo, o seu corpo e sua mente, o indivíduo é soberano". Como muito bem demonstrou o autor, isso não serve apenas para satisfazer nossos egos, mas é o próprio fundamento da democracia.

    hélio schwartsman

    É bacharel em filosofia, publicou 'Pensando Bem...' (Editora Contexto) em 2016.
    Escreve às terças, quartas, sextas, sábados e domingos.

    Fale com a Redação - leitor@grupofolha.com.br

    Problemas no aplicativo? - novasplataformas@grupofolha.com.br

    Publicidade

    Folha de S.Paulo 2024