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    Hélio Schwartsman

    Caça aos ateus

    09/05/2013 03h00

    Está aberta a temporada de caça a Richard Dawkins e, por extensão, a Sam Harris, Christopher Hitchens e Daniel Dennett --também conhecidos como os quatro cavaleiros do ateísmo. É crescente o número de autores, grande parte deles ateus, que critica o biólogo britânico e seus colegas por imprimir um tom excessivamente militante a suas campanhas contra a religião.

    O mais recente exemplar dessa safra é o primatologista Frans de Waal, que acaba de lançar o excelente "The Bonobo and the Atheist: In Search of Humanism Among the Primates" (o bonobo e o ateu: em busca de humanismo entre os primatas). Ali, ele reserva palavras duras a Dawkins, Harris e Hitchens (e elogia Dennett). Afirma que os neoateus têm algo de obsessivo e que sua cruzada faz tanto sentido quanto o "dormir furiosamente", antinomia extraída de um célebre exemplo de Noam Chomsky de frase sintaticamente correta, porém semanticamente absurda.

    De Waal não está só. Vários outros já haviam criticado a veemência de Dawkins, inclusive alguns ateus ilustres como o físico de partículas Peter Higgs, o astrônomo Martin Rees e o filósofo da ciência Michael Ruse, para citar apenas alguns.

    Também acredito que Dawkins e especialmente Harris por vezes carregam na estridência, mas não apenas acho que eles têm o direito de fazê-lo como creio que é bom para a sociedade que haja intelectuais públicos dizendo essas coisas.

    Comecemos pelo mais básico, que é a questão da legitimidade. Se é aceitável (como eu penso que é) que hare krishnas abordem as pessoas nas ruas para fazer proselitismo e que grupos cristãos possam tocar nossas campainhas no domingo de manhã com o intuito de salvar-nos as almas, então é igualmente razoável que os cavaleiros do ateísmo preguem suas verdades no tom que lhes parecer mais adequado. Desde que todas as partes se atenham a usar palavras e não fogueiras (como fazia até há pouco a Igreja Católica) ou leis de blasfêmia (como ainda fazem muitos países, notadamente os islâmicos), está tudo dentro do maravilhoso mundo da democracia.

    É claro que alguém pode se sentir ofendido pelo discurso ateu, mas esse é o preço de viver em sociedades multiculturais. Não custa lembrar que certos aspectos da teologia cristã incomodam judeus e muçulmanos, cujas religiões afirmam coisas que não são apreciadas por budistas e hindus. A única forma de evitar o ruído seria adotar um credo único (e obrigatório), o que é evidentemente uma péssima ideia.

    Vou ainda um pouco mais longe e afirmo que essa balbúrdia levemente iconoclasta é positiva. Pelo menos em sociedades como as ocidentais, que colocam a ênfase na liberdade do indivíduo, o choque entre discursos religiosos e antirreligiosos resulta em informações relevantes que podem fazer a diferença na vida de uma pessoa.

    É claro que a maioria só ouvirá o que quer. Pregações até funcionam para roubar o sujeito de uma igreja para outra, mas se tornam bem menos eficientes na hora de tirar a fé religiosa de quem a tem ou dá-la a quem não tem. Acho que poderíamos contar nos dedos o número de pessoas que Dawkins efetivamente converteu para sua causa. Ainda assim, é importante que o ateísmo tenha visibilidade como um sistema de crenças e descrenças coerente. Mais do que isso, é bom que as pessoas vejam ateus confessos como membros produtivos da sociedade e não como devoradores de criancinhas. É essa percepção que dá a alguém que deseje romper com a religião em que foi criado a oportunidade de fazê-lo, o que contribui para aumentar a carga de felicidade no mundo (ateus somos todos um pouco utilitaristas).

    Isso dito, passemos aos pontos em que eu acho que Dawkins de fato exagera.

    Para começar, se o sujeito está feliz por pertencer a uma igreja e não prejudica ninguém ao exercitar sua fé, não vejo nenhum motivo para privá-lo desse prazer, assim como não vejo razões para proibir a literatura, a pornografia, as drogas nem coleções de selo. Como eu já disse, ateus tendemos a buscar critérios quase materiais como o prazer ou a felicidade para fazer juízos valorativos.

    Pessoalmente, eu até gostaria, como Dawkins, de ver um mundo sem religiões, no qual as pessoas buscariam outras formas de transcendência, mas não creio que isso vá ocorrer. Pelo menos não no horizonte das próximas décadas e séculos. Nesse contexto, parece-me um pouco despropositado advogar pela extinção das igrejas ou propor que cultos só sejam permitidos para maiores de 18 anos. Essas "boutades" podem até fazer sentido como discurso estratégico, mas não são posições que eu abrace.

    De toda maneira, mesmo que de forma estrepitosa --e até politicamente inábil, alguém poderia acrescentar--, os neoateus propõem uma infinidade de questões relevantes que de fato merecem debate público. É possível provar a existência ou a inexistência de Deus? Qual a origem da religião? A moral depende de uma força externa como Deus? Por que o ser humano tem necessidade (se é que de fato tem) de buscar a transcendência? Qual o futuro da religião? Eu receio aqui que a alternativa ao ateísmo explícito, que é a ideia lançada por Stephen Jay Gould de manter ciência e religião em compartimentos totalmente separados, os NOMAs (Non-Overlapping Magisteria), acabe escamoteando algumas dessas perguntas.

    Não tenho a pretensão nem a competência para responder a essas questões, mas há um ponto que eu gostaria de salientar. Uma série de estudos de áreas tão diversas como a psicologia, a neurociência e a antropologia oferece elementos para pensar a religião como um fenômeno biológico.

    Ao que parece, ela está calcada nos bons e velhos vieses cognitivos, que nada mais são do que formas bastante particulares de pensar e de agir que já vêm como item de fábrica no ser humano.

    Vale a pena perder um tempinho mostrando dois exemplos bem simples, mas reveladores da força desses vieses.

    Você está vendo as duas mesas abaixo? Muito bem qual é a mais comprida? E a mais larga? Na verdade, as duas mesas têm medidas idênticas. Duvida? Pegue uma régua e confira. Ou, melhor ainda, desenhe o tampo de uma delas em papel vegetal e leve o modelo para a outra. Vai servir direitinho.

    Reprodução

    A ilusão, criada pelo psicólogo Roger N. Shepard, ocorre devido a especificidades relativas à forma pela qual nosso cérebro interpreta imagens em duas dimensões como se tivessem três. Não vale à pena aqui entrar nas tecnicalidades. O importante a reter é que, mesmo sabendo que tudo não passa de um truque, nós continuamos vendo a mesa da esquerda como mais comprida e estreita.

    Vamos ao segundo exemplo. Você está vendo as duas formas abaixo? Uma delas chama-se "bouba" e a outra, "kiki". Qual nome você daria a cada uma delas?

    Reprodução

    Se você é como 98% da humanidade, batizou a imagem da esquerda de "bouba" e a da direita de "kiki". A razão para isso está nas interações entre os centros cerebrais da visão, audição e fala. As curvas gentis e ondulações da primeira forma imitam o movimento labial necessário para pronunciar "bouba" e praticamente nos impelem a dar esse nome à imagem. Já os ângulos fechados da segunda como que reproduzem as súbitas mudanças na posição da língua diante do palato que usamos para dizer "kiki".

    Essa é só uma das muitas e misteriosas formas através das quais nossos cérebros são influenciados por fatores que nem desconfiamos que existem.

    Deus também pode ser um resultado da arquitetura de nossas mentes. Os modelos propostos ao longo das últimas duas décadas sugerem que a crença em forças sobrenaturais é uma consequência da noção de agência que desenvolvemos ao longo de nossa história evolutiva. Como é melhor prevenir do que remediar, fomos calibrados para sempre pressupor que, por trás de movimentos e acontecimentos, existe um ser animado. Quem não pensava assim, acabou devorado por um tigre dentes-de-sabre.

    Outros dois elementos que contribuíram bastante para forjar os deuses foram nossa tendência para reconhecer padrões (indispensável para perceber regularidades) e a propensão a inferir estados mentais alheios (essencial para a vida em sociedade).

    Isso resolve a questão da existência de Deus? É claro que não, mas é uma explicação que me parece bastante verossímil para o fato de, nos últimos dez mil anos, a humanidade ter criado dez mil religiões com cerca de mil deuses, nas contas de Michael Shermer.

    O próprio De Waal, apesar das críticas acerbas a Dawkins (que também são legítimas), não pensa de forma muito diferente, tanto que se deu ao trabalho de escrever "O Bonobo" para derrubar um dos principais argumentos utilizados pelos teístas para justificar a religião, que é o de que, sem um Deus para garantir o universo moral, "tudo é permitido", para utilizar a expressão imortalizada por Dostoiévski.

    De Waal mostra de forma a deixar poucas dúvidas que, se é temerário falar numa moral símia, está mais do que claro que nossos primos bonobos e chimpanzés já carregam vários dos elementos que a compõem. Seu núcleo mais essencial, que é o fato de ligarmos uns para os outros, notadamente as mães para seus filhos, está presente em todos os mamíferos, na maior parte das aves e até em alguns répteis.

    Como o próprio Darwin já escrevera, mais de cem anos atrás, a moral pode ser explicada pela evolução dos animais sociais.

    As diferenças entre Dawkins e De Waal são, assim, mais de grau do que de natureza. É como a diferença entre chimpanzés e bonobos. Enquanto os primeiros são mais belicosos, os segundos adotam a linha do paz e amor. De toda maneira, como escreve o próprio De Waal, os bonobos só desenvolveram sofisticadas técnicas de promover a paz porque há muitos conflitos entre eles.

    Ciência e religião não precisam ser inimigas mortais, mas não vejo como negar que, em muitas esferas, elas necessariamente entrem em conflito. Podemos lidar com as diferenças com a estridência de Dawkins ou com a ataraxia de De Waal. Desde que a contenda permaneça no terreno dos argumentos, vale tudo.

    hélio schwartsman

    É bacharel em filosofia, publicou 'Pensando Bem...' (Editora Contexto) em 2016.
    Escreve às terças, quartas, sextas, sábados e domingos.

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