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    Hélio Schwartsman

    No caminho de Damasco

    DE SÃO PAULO

    12/09/2013 02h35

    Quem pode manda e quem tem juízo obedece. O dito popular resume mais ou menos bem o estado hobbesiano em que se travam as relações internacionais. Sem um poder central capaz de disciplinar os apetites dos países, reina uma espécie de vale-tudo. Prova disso é que os EUA, potência hegemônica do planeta, consideram lançar bombas contra posições do governo sírio, como forma de punição pelo suposto uso de armas químicas.

    Barack Obama só não chegou às vias de fato, porque encontrou uma resistência um pouco maior do que a antecipada em seus aliados (o Reino Unido, por exemplo, descartou participar do ataque) e na opinião pública norte-americana e, portanto, no Congresso. Se o presidente tem um pouco de juízo, deverá agarrar-se à proposta russa que surgiu como que por acaso de colocar o arsenal sírio sob controle internacional. Trata-se, como veremos, de uma gigantesca tábua de salvação, que livra a cara de todos os atores. Mas prossigamos com mais calma.

    Comecemos pelos fatos. A essa altura, já não há dúvidas de que armas químicas tenham sido utilizadas, provocando a morte de cerca de 1.400 civis nos subúrbios de Damasco. EUA e seus aliados insistem que o ataque com gases é de responsabilidade das tropas do ditador Bashar al-Assad. É possível, ainda que se possa perguntar por que o mandatário arriscaria uma manobra temerária como essa num momento em que parecia estar levando a melhor no conflito civil. É verdade que tiranos nem sempre agem logicamente e muitas vezes não detém controle absoluto sobre seus generais. Imaginar que tenham sido os rebeldes a lançar o ataque para comprometer o governo também é uma possibilidade, mas há dúvidas se eles teriam condições técnicas e operacionais de fazê-lo. Seja como for, dada a incerteza e o histórico de acusações infundadas dos norte-americanos --a guerra no Iraque teve como pretexto livrar o mundo de armas químicas que, verificou-se depois, não existiam--, faz sentido cobrar de Barack Obama que apresente provas fortes de que al-Assad é de fato o responsável.

    No plano jurídico também há problemas. A Síria não é parte na Convenção para a Proibição de Armas Químicas, que proscreve a utilização desse gênero de munição. Se é lícito impor-lhe o tratado, já que a maioria das nações o acatou, como sugeriu o presidente Barack Obama, alguém poderia, pelos mesmos motivos, argumentar que os EUA estão sob jurisdição do Tribunal Penal Internacional, embora jamais tenham aderido a essa instituição e não admitam que seus cidadãos sejam nela julgados.

    É verdade que, em 1968, a Síria adotou o Protocolo de Genebra, que também bane a utilização de armas químicas. O problema aqui é que esse tratado, datado de 1925, em princípio se aplica apenas a guerras entre Estados, não a conflitos internos. Há uma corrente que tenta ampliar o escopo do protocolo, mas, num debate jurídico, a Síria sempre teria um bom argumento.

    Um caminho judicial a meu ver mais coerente para justificar a intervenção seria a chamada responsabilidade de proteger, ou seja, esquecer as armas químicas e defender uma ação humanitária pura e simples. Há duas dificuldades aqui. A primeira é que esse tipo de operação em tese precisa do aval do Conselho de Segurança da ONU, que jamais virá porque a Rússia, que tem poder de veto, é a grande aliada do regime de al-Assad.

    A segunda armadilha tem um caráter quase linguístico. Obama precisa justificar a intervenção pelas armas químicas, ou fica devendo uma explicação para não ter agido antes. Desde o início do conflito na Síria, há dois anos e meio, o país já contabiliza mais de 100 mil mortos e milhões de refugiados. Por maior horror que tenhamos a todas as formas de envenenamento, é meio esquisito defender que os 1.400 óbitos por armamento químico são qualitativamente tão mais graves do que os 98.600 por balas convencionais que demandam uma ação bélica que era dispensável no cenário sem os gases.

    Como disse no início da coluna, entretanto, o Direito é só um detalhe. Nas relações internacionais, a força ainda prepondera sobre as regras e, se os EUA quiserem, irão agir independentemente de leis e tratados. Precisam, entretanto, de uma certa legitimidade, que tentaram buscar no plano interno, convocando o Congresso a apoiar a ação, e no externo, convencendo o maior número possível de nações de que al-Assad transpôs uma linha e que essa ação não pode ficar impune, ou o mundo será um lugar menos seguro.

    Este último argumento merece um exame mais detido. Em princípio eu concordo. Se queremos sair do estado de natureza para criar algo parecido com uma comunidade de nações, precisamos antes de tudo identificar consensos morais e punir os países que deles se desviam. Também acho que dá para afirmar que a não utilização de gases tóxicos é uma dessas virtuais unanimidades.

    Steven Pinker, em "Os Anjos Bons de Nossa Natureza", mostra que esse consenso veio de forma quase natural, provavelmente calcado em um pavor ancestral da espécie contra o envenenamento, que logo associamos à ideia de traição e covardia. Com efeito, gases foram usados de maneira mais ou menos liberal por quase todos os lados na Primeira Guerra Mundial, mas, de lá para cá, sua utilização foi bastante rara. Nem mesmo os nazistas, já nos estertores da guerra, ousaram jogar vapores tóxicos contra os russos nos campos de batalha.

    Na verdade, há apenas três ocasiões bem documentadas do uso em conflitos militares, todas no Oriente Médio. Os egípcios se valeram de armas químicas na intervenção que fizeram no Iêmen nos anos 60, Saddam Hussein despejou gases tanto contra soldados iranianos como contra rebeldes curdos no finalzinho dos anos 80 e, agora, alguém voltou a empregar esse tipo de armamento na Síria. Contam-se, também umas poucas ações terroristas com gases, notadamente o ataque ao Metrô de Tóquio em 1995.

    Considerando-se que, nestes últimos cem anos, ocorreram centenas de guerras e disputas armadas e que em muitas delas os estoques de armas químicas estavam mais ou menos à mão, percebe-se que nossa espécie demonstra uma notável capacidade de autocontenção, muito maior do que sugerem as análises que acentuam o caráter destrutivo da humanidade.

    O problema com o raciocínio de Obama, me parece, é que a ação militar limitada que ele propõe não resolve nada. Ela não teria o objetivo de derrubar al-Assad do poder e dificilmente iria anular a capacidade do tirano de lançar novos ataques químicos. Talvez fizesse sentido defender uma intervenção que resolvesse a disputa em favor de um dos lados e pusesse um fim à guerra civil, hipótese em que a matança acabaria e ninguém ficaria tentado a recorrer aos estoques químicos. Mas os EUA têm boas razões para não embarcar numa aventura desse calibre. Para começar, a oposição a al-Assad, que, com alguma ajuda, teria condições de derrotá-lo, se divide entre grupos sunitas seculares, nos quais Washington até poderia apostar, e jihadistas vinculados a franquias da rede Al Qaeda, que são uma espécie de pior pesadelo da Casa Branca. No mais, a memória do atoleiro iraquiano, com enormes custos para os EUA em vidas de soldados e financeiros, ainda está fresca na memória.

    Nessas condições, disparar alguns mísseis contra fortificações de al-Assad apenas adicionaria incertezas e complexidades a um conflito já bastante delicado. Receio, portanto, que seja uma péssima ideia. Até pode servir ao interesse de Obama e dos americanos de mostrar que eles têm autoridade, mas duvido que venha a fazer algum bem aos sírios. Pelo contrário, há sempre a possibilidade de uma bomba mal mirada produzir um belo estrago na população civil.

    Mesmo reconhecendo que pode ser legítimo e oportuno intervir em crises humanitárias e combater tiranos que desafiam os poucos consensos morais entre nações, penso que, neste caso, dadas as especificidades do conflito sírio, o melhor seria continuar protelando qualquer intervenção.

    Nesse contexto, não poderia ter sido mais oportuna a proposta dos russos de fazer com que al-Assad entregue seu arsenal químico. É um daqueles raros casos em que todos ganham.

    Para o ditador, a vantagem é óbvia. Ele daria armas que quase não são utilizadas e se livraria de sofrer um ataque que poderia debilitar bastante suas forças, notadamente o poderio aéreo.

    O russo Vladimir Putin, por sua vez, sairia como herói. Ele se tornaria o campeão da paz, o homem que evitou uma nova "guerra" no Oriente Médio e recolocou a diplomacia nos eixos dos quais nunca deveria ter saído.

    Até Obama poderia tentar vender uma história positiva. Ele insofismavelmente evitaria o risco de sofrer uma séria derrota no Congresso e ainda poderia dizer que foi sua disposição de atacar posições sírias que fez com que al-Assad aceitasse pôr as armas sob controle externo.

    Há, é claro, um elemento de farsa, já que essa suposta entrega do arsenal é uma operação tão difícil de realizar quanto uma intervenção militar cirúrgica e decisiva. Ou seja, em ambos os casos, ensaia-se um teatro no qual os EUA apenas fingem posicionar-se em cena, dando tempo para que o conflito se resolva pelos canais tradicionais. Não é a posição mais edificante, mas é por certo a mais prudente. Como escrevi para uma coluna da Folha impressa, nem todo problema tem solução. E receio que a Síria, por ora, esteja nessa categoria.

    Não me entendam mal. Ainda bem que são os EUA o poder dominante. Imagino que o mundo seria bem pior se quem desse as cartas fosse a Rússia de Vladimir Putin ou a China cleptocrática. Não chego a afirmar que os EUA sejam uma potência benigna, mas há certamente coisa muito pior no mercado. A diferença fundamental, acredito, não está numa possível superioridade moral dos americanos ou de seus líderes, mas no fato de que o país é uma democracia, na qual os chefes precisam seguir algumas regras e devem satisfações à opinião pública.

    hélio schwartsman

    É bacharel em filosofia, publicou 'Pensando Bem...' (Editora Contexto) em 2016.
    Escreve às terças, quartas, sextas, sábados e domingos.

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