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    Hélio Schwartsman

    Traições literárias

    14/05/2014 02h00

    SÃO PAULO - Na polêmica entre simplificar ou não Machado de Assis para que ele seja mais lido, marco coluna do meio.

    A boa crítica literária combina mais com iconoclastia do que com sacralização. Não há necessidade de endeusar cada uma das frases lapidadas pelo autor, especialmente se elas estão a criar uma barreira que afasta potenciais leitores do texto. Se é lícito fazer adaptações de Homero, Cervantes e Shakespeare, não há por que considerar Machado intocável.

    No mais, palavras envelhecem. Por idiossincrasias do desenvolvimento de português e dos autores que elegemos como canônicos, é raro ver aqui edições bilíngues da versão arcaica do idioma para a moderna, mas elas são comuns em inglês ou francês. Um texto como "Beowulf", composto entre os séculos 8º e 11º, é ininteligível para o falante de inglês atual, daí que as edições são "traduzidas", isto é, adaptadas para que possam ser compreendidas. Aos puristas resta buscar edições bilíngues e estudar as declinações do inglês antigo, que desapareceram.

    De modo um pouco menos dramático, um autor tão importante e nem tão antigo como Rabelais (c. 1483-1553) também costuma ser contemplado com edições modernizadas ou bilíngues. A barreira linguística entre o francês renascentista de Rabelais e o moderno não é intransponível como no caso de "Beowulf", mas o respeito ao original tornaria a leitura um processo penoso e não prazeroso. Entre o "Beowulf", Rabelais e Machado a diferença é muito mais de grau do que de natureza.

    Resta saber se o projeto de modernização de Machado que gerou toda a controvérsia vale a celeuma. Tenho dúvidas. Se os exemplos de intervenções mostrados na reportagem da Folha de sábado são representativos, trocar "reproche" por "censura" é muito mais serviço para uma nota de rodapé do que para uma "tradução", especialmente uma que consome R$ 1 milhão em verbas públicas.

    hélio schwartsman

    É bacharel em filosofia, publicou 'Pensando Bem...' (Editora Contexto) em 2016.
    Escreve às terças, quartas, sextas, sábados e domingos.

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