SÃO PAULO - O rei Juan Carlos abdica em favor do filho Felipe, que, doravante, reinará sobre a Espanha.
Espanta-me que algumas das populações mais educadas do mundo ainda mantenham a monarquia. Não estamos falando apenas dos quase meridionais espanhóis, mas de alguns dos mais prósperos países da Europa, como Reino Unido, Suécia, Noruega, Dinamarca, Holanda, Bélgica etc., que gastam somas não desprezíveis de recursos públicos para sustentar seus reis e rainhas.
O que deu na cabeça desse povo que, em pleno século 21, no qual a discussão do momento é como combater a desigualdade, ainda alimenta a mais extravagante das formas de discriminação social, que são os chamados direitos de nobreza?
Se ainda é possível descrever um instituto como a herança como um gesto voluntário do indivíduo que, por méritos próprios, foi capaz de acumular (ou pelo menos não dilapidar) sua fortuna, esse discurso se torna insustentável no caso dos direitos de nascimento. Como justificar que o fato de ser filho de uma pessoa assegure estatuto jurídico diferente do dado aos demais cidadãos?
Sempre que uma ideia é ao mesmo tempo irracional e muito comum, é provável que envolva vieses cognitivos. No caso da realeza, temos uma aliança entre nosso essencialismo inato e uma sistemática campanha publicitária de 12 milênios que tenta vender príncipes e princesas sob luz favorável. Nela, nenhuma arma foi poupada. Soberanos evocam direito divino ao trono e pretendem exercer o monopólio da virtude. Praticamente todos os heróis da Ilíada e da Odisseia são monarcas. Eles também são presença constante na Bíblia e clássicos da literatura. Não hesitam nem em recorrer a poderes mágicos –até o século 17, acreditava-se que tocar no corpo do rei curava doenças.
Ao que parece, poucos séculos de democracia e de educação em massa não bastaram para reverter os pendores pró-monárquicos da espécie.
É bacharel em filosofia, publicou 'Pensando Bem...' (Editora Contexto) em 2016.
Escreve às terças, quartas, sextas, sábados e domingos.