SÃO PAULO - "A hipocrisia é uma homenagem que o vício presta à virtude." Essa é uma das melhores tiradas de François de La Rochefoucauld (1613-1680), que está entre os melhores frasistas da história. Em poucas palavras ele define de modo surpreendente um termo complexo como "hipocrisia" e ainda lhe prega a etiqueta moral adequada.
Faço essas reflexões à propósito da reportagem que a Folha publicou no domingo sobre as barrigas solidárias, a iniciativa de uma ONG britânica que reúne mulheres que se dispõem a engravidar para gays ou heterossexuais com dificuldades reprodutivas. Obviamente, vejo com bons olhos esse tipo de atitude, mas não consigo deixar de apontar a hipocrisia geral da sociedade nessa matéria. Com poucas exceções como a Índia e o Nepal, o mundo proscreve as chamadas barrigas de aluguel, operação em que a mulher é remunerada para prestar esse serviço.
A própria regra que vige no Reino Unido escancara a fragilidade da distinção entre a doação altruísta, que seria válida, e a monetariamente motivada, que representaria uma abominação. A norma britânica impede pagamento, mas permite o ressarcimento de gastos com a gravidez, como despesas médicas, com deslocamentos, roupas de gestante, psicólogo, além do reembolso por perdas de rendimento. Ganha um prêmio Nobel de Metafísica quem apontar a diferença de natureza entre a primeira e a segunda modalidade.
Podemos ir até um pouco mais longe, perguntando por que classificamos o aluguel do útero quase como um pecado, enquanto louvamos como virtuoso o sujeito que aluga sua força de trabalho ou seu intelecto na atividade que chamamos de trabalho assalariado. Os mais pobres seriam explorados, diriam alguns. De acordo, mas, neste caso, deveríamos proibir os pobres de trabalhar também, já que é grande o risco de serem explorados quando alugam seus músculos.
É bacharel em filosofia, publicou 'Pensando Bem...' (Editora Contexto) em 2016.
Escreve às terças, quartas, sextas, sábados e domingos.