SÃO PAULO - Experiências subjetivas individuais como o amor, a sensação que temos ao ler um poema e até a percepção de uma cor –os "qualia" para usar o vocabulário técnico filosófico– jamais poderão ser apreendidas em experimentos nem descritas pela ciência, o que nos torna, para todo o sempre, criaturas únicas e irredutíveis. Esse é quase um dogma da filosofia, mas até que ponto é verdadeiro?
Podemos ser únicos, já que seria estatisticamente impossível que dois seres humanos acabassem desenvolvendo 100 trilhões de sinapses idênticas, mas, no que concerne à consciência, que é a chave para o problema dos "qualia", o mistério, embora ainda longe de resolvido, está se tornando uma questão cada vez mais tratável pela ciência. Quem mostra isso de forma magistral é Stanislas Dehaene em "Consciousness and the Brain" (consciência e cérebro). O autor descreve os experimentos que sua equipe e outros grupos desenvolveram para flagrar o cérebro no instante em que ele se torna consciente de alguma percepção. Identifica quatro correlatos neuronais desse estado, que seriam as assinaturas da consciência. Mostra também o que acontece com os estímulos que são percebidos pelo cérebro, mas permanecem na esfera do inconsciente, onde não deixam de pautar nossas atitudes.
Mais importante, Dehaene consegue reunir isso tudo numa narrativa coerente e testável, a Teoria do Espaço de Trabalho Global (GWT), que, numa versão simplificada, é a ideia de que uma percepção se torna consciente quando passa a ser transmitida em massa para várias outras áreas do cérebro, que não deixam de conduzir processos inconscientes. Seria uma espécie de fluxo de atenção.
O livro representa mais um golpe contra os dualistas, já que traz indícios bem convincentes de que não precisamos mais do que flutuações de matéria e energia no cérebro para explicar tudo o que sentimos.
É bacharel em filosofia, publicou 'Pensando Bem...' (Editora Contexto) em 2016.
Escreve às terças, quartas, sextas, sábados e domingos.