SÃO PAULO - Comento hoje o caso da médica gaúcha que se recusou a continuar como pediatra de uma criança porque a mãe dela é petista. Como não poderia deixar de ser, o episódio dividiu opiniões e deu lugar a uma batalha na internet.
Ao tomar essa decisão, a médica decerto não engrandeceu a profissão, mas não cometeu nenhum crime nem violação a normas éticas. Pelo Código de Ética Médica (CEM), que tem força de lei, a obrigação de atender está restrita a urgências e emergências, quando não houver outro profissional qualificado (art. 33). Nenhum dos elementos se aplica ao caso. As razões que levam um profissional a recusar o atendimento não precisam ser boas nem mesmo objetivas. Vale qualquer coisa que lhe dê "nos ditames da consciência" (IX).
A ideia por trás dessa regra, que me parece essencialmente correta, é a de que não é bom nem para médicos nem para pacientes que haja questões morais que possam abalar a relação de confiança que precisa existir entre as partes. Meus pendores libertários me fazem até pensar que o CEM é impositivo demais. Ele obrigaria, por exemplo, um médico a socorrer o assassino de seu filho. Ou um médico judeu na Alemanha de 1938 a tratar Hitler. Será que isso não seria exigir demais?
Dessas reflexões não decorre a conclusão de que a pediatra agiu bem. Ela teria podido perfeitamente livrar-se da criança e de sua mãe sem declarar que o fazia por motivo de preferência partidária. Bastava dizer que estava reduzindo seu quadro de pacientes, o que seria verdade.
Ao optar por politizar a questão, a médica não só acabou expondo desnecessariamente a criança como também atraiu para si um turbilhão de críticas, muitas das quais procedentes. Ela não foi, afinal, nenhum exemplo de tolerância. Seu maior erro, porém, foi ignorar a lição de Hipócrates, que ensinava, já no século 5º a.C., que médicos devem sempre manter máxima discrição.
É bacharel em filosofia, publicou 'Pensando Bem...' (Editora Contexto) em 2016.
Escreve às terças, quartas, sextas, sábados e domingos.