SÃO PAULO - De um modo geral, não traduzimos a palavra "impeachment", e a expressão inglesa "high crimes and misdemeanors", que consta do artigo da Constituição norte-americana que criou o instituto, acabou virando, em português, "crimes de responsabilidade". Mais sábios, nossos vizinhos de língua espanhola costumam utilizar respectivamente os termos "juicio político" e "acusación constitucional".
Gosto dessa linguagem porque ela limita o espaço para confusões terminológicas que o governo Dilma agora tenta explorar em seu favor. Ao chamar o impeachment de julgamento político, nossos vizinhos revelam a verdadeira natureza do procedimento e afastam a ideia de que ele deve ser idêntico a um juízo penal. Ao optar pela "acusación constitucional", evitam a palavra "crime", que leva pessoas a acreditar que Dilma não merece ser afastada porque não é bandida e não há prova de que tenha se locupletado com a corrupção.
O ponto central é que o instituto do impeachment, que copiamos dos americanos, não foi concebido para substituir a Justiça. Um dos pavores dos "founding fathers" era o de que o regime presidencialista degenerasse numa espécie de monarquia. Foi para combater essa tendência que os federalistas decidiram limitar os poderes da Presidência num sistema de freios e contrapesos. Um dos mecanismos utilizados é o impeachment.
A ideia é que, ao contrário do rei, que era inimputável, o presidente nos EUA seria responsabilizado não só por seus atos como também pelos de seus subordinados. Se a acusação dissesse respeito a crime comum, o mandatário seria julgado duas vezes, uma pelo Senado, que lhe tiraria o cargo, e outra pela Justiça, que estabeleceria a pena condizente. Se a acusação não incluísse delitos da alçada do direito penal, bastava o impeachment. Ele não serve para avaliar honestidades, mas para garantir que o presidencialismo não se torne o regime da irresponsabilidade.
É bacharel em filosofia, publicou 'Pensando Bem...' (Editora Contexto) em 2016.
Escreve às terças, quartas, sextas, sábados e domingos.